Folha de São Paulo
A União Europeia (UE) apresentou nesta quarta-feira (14) um novo plano para tentar reduzir a poluição gerada pelo bloco e, assim, conter o aquecimento global. O projeto prevê, entre outros pontos, o aumento do uso de energias limpas —como solar e eólica—, estímulos para o uso de carros elétricos e o veto à fabricação de automóveis movidos a combustão a partir de 2035.
Há também propostas polêmicas, como taxas extras para importar produtos fabricados sem respeito às regras ambientais e a orientação de aumentar impostos sobre combustíveis como diesel e gasolina.
As mudanças precisam ser aprovadas pelo Parlamento e pelo Conselho Europeu, que reúne chefes de Estado ou de governo, o que demandará acordos entre os 27 países-membros e com a indústria europeia. Em alguns temas, será necessário consenso com parceiros comerciais de outras partes do mundo.
O pacote foi batizado de “Fit to 55” (adaptado para 55%). “Nós temos a meta, e agora apresentamos o mapa de como chegaremos lá”, disse Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, responsável pela elaboração do projeto. A implantação das medidas deverá custar 500 bilhões de euros (R$ 3 trilhões).
Há a proposta de criar um novo Fundo Climático Social, custeado pelo orçamento da UE, para ajudar os países nessa transição —a iniciativa deve gerar 72,2 bilhões de euros (R$ 432 bilhões) em investimentos entre 2025 e 2032. Além disso, foi proposto que os membros coloquem recursos e dobrem o montante.
O objetivo principal do pacote é reduzir as emissões de gases do efeito estufa em 55% até 2030, tendo como base os níveis de 1990, para que os países se aproximem da neutralidade de carbono —em que todas as emissões são absorvidas de alguma forma—, uma meta europeia para 2050. As emissões já caíram 24% em relação a 1990, enquanto a economia do bloco cresceu 60% no mesmo período.
O anúncio dá sinais importantes para a COP26 (Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas), marcada para novembro em Glasgow, no Reino Unido. O encontro, no qual líderes mundiais debatem medidas para frear o aquecimento global, tem neste ano a missão de tirar o Acordo de Paris do papel e a expectativa de que os governos incrementem seus compromissos de combate à crise climática.
Os 27 países do bloco europeu emitem atualmente cerca de 8% das emissões globais de carbono, mas se beneficiaram durante dois séculos da falta de regulações. Assim, puderam lançar poluentes sem controle enquanto expandiam sua produção industrial, a partir do século 19.
Como comparação, os EUA prometeram reduzir suas emissões entre 40% e 43% até 2030. Já a China se comprometeu a parar de aumentar a geração de poluentes antes de 2030, para depois começar a baixá-la.
No caso brasileiro, há o comprometimento de cortar emissões em 37% até 2025 e em 43% até 2030. Em abril, durante a Cúpula do Clima promovida pelos EUA, o presidente Jair Bolsonaro comprometeu-se a alcançar a neutralidade climática até 2050 —dez anos antes do previsto— e disse que o desmatamento ilegal será eliminado até 2030, algo visto com descrença por especialistas.
A expectativa é a de que a redução da poluição freie o aquecimento do planeta, meta adotada pelo Acordo de Paris, de 2015. Gases poluentes geram o efeito estufa: criam uma camada na atmosfera que impede a dissipação do calor de volta ao espaço, tornando o planeta mais quente.
Além de reduzir a poluição, a UE quer estimular a criação de novas tecnologias de energia limpa, o que pode trazer benefícios econômicos. “Em termos de direção que a Europa está tomando, isso poderia ser da mesma natureza que o mercado comum ou o euro”, disse Frans Timmermans, vice-presidente executivo da Comissão Europeia. Para Adina Valean, comissária europeia de Transportes, trata-se da “chance de criar um mercado para combustíveis alternativos sustentáveis e tecnologias de baixo carbono e de tornar a UE um líder de mercado em tecnologias inovadoras”.
Uma das principais propostas anunciadas nesta quarta é uma mudança no mercado de carbono europeu, no qual os maiores geradores de poluentes pagam diretamente por isso. O dinheiro ganho com a venda de créditos de carbono deverá ser totalmente usado em projetos relacionados à energia limpa, e os países terão metas individuais de absorção do elemento. A UE propôs que 310 milhões de toneladas de CO₂ (gás carbônico) sejam absorvidas a cada ano e que essa meta seja distribuída entre seus países-membros. Por fim, que os objetivos sejam adotados como forma de lei, a partir de 2026.
O plano é usar novas tecnologias de monitoramento, como sensores em solo e satélites, para acompanhar as emissões e o cumprimento das metas. Atualmente, as florestas e outras áreas naturais preservadas do bloco absorvem 268 milhões de toneladas de CO₂ por ano. No entanto, o carbono é liberado de novo na atmosfera caso as árvores sejam cortadas ou queimadas. Ao todo, a UE emite anualmente 4 bilhões de toneladas de CO₂, vindas de atividades como indústrias, transportes e geração de energia.
Outro ponto proposto é a adoção de taxas extras de importação para produtos fabricados sem levar em conta as regras ambientais —medida apelidada de “fronteira de carbono”. Com ela, espera-se reduzir a concorrência com itens que custem menos por serem feitos de modo mais poluente. A taxação seria introduzida gradualmente a partir de 2023, mas não foi bem recebida por países que negociam com a Europa, como os EUA, e pode ser questionada na OMC (Organização Mundial do Comércio).
Para o embaixador e ex-ministro do Meio Ambiente e da Fazenda Rubens Ricupero, é um erro classificar a medida como protecionista, uma vez que seu objetivo central não é criar uma reserva de mercado, mas “atingir uma meta de interesse da humanidade, como o combate à emergência climática”.
O diplomata observa que seria difícil para a indústria europeia arcar sozinha com o preço dos certificados de carbono, que têm aumentado o valor final de produtos como o aço, e classifica a distribuição dos valores pela cadeia de produção como uma medida necessária.
Assim como trabalha para influenciar no mercado externo, a UE também tem adotado um sistema de classificação que estabelece uma lista de atividades econômicas ambientalmente sustentáveis, acrescenta Thatyanne Gasparotto, diretora da Climate Bonds Initiative para América Latina, organização que administra uma rede global de certificação de títulos verdes. “O bloco também tem feito o movimento interno de adaptar suas empresas, então seria precipitado caracterizar o pacote como protecionista”, diz.
Como, num primeiro momento, as taxas seriam impostas a materiais como aço e ferro, o mercado brasileiro não deve sentir efeitos imediatos. Caso o imposto se estenda à cadeia secundária, a história pode mudar, observa Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima. O Brasil exporta aço e ferro para a China, por exemplo, que, por sua vez, os manufatura e vende para o mercado europeu.
Ainda assim, concordam os especialistas, o novo pacote da UE é mais um sinal vermelho para o isolamento brasileiro em torno da pauta ambiental. “Essa é mais uma demonstração de que a questão do clima entrou nos fluxos financeiros globais”, diz Astrini. “Mas, ao invés de progressos, a agenda política brasileira tem sido ocupada por retrocessos.”
Há dúvidas se haverá consenso para a aprovação das propostas, que devem sofrer resistência dos países que dependem mais de combustíveis fósseis e de indústrias poluidoras. Vetar carros a diesel e gasolina, que são mais baratos, pode revoltar os europeus de menor renda, mesmo em países ricos.
Em 2018, uma proposta da França para criar uma taxa sobre combustíveis poluentes deu origem a uma série de protestos que levou milhares de pessoas às ruas durante semanas e ficou conhecida como movimento dos coletes amarelos. O governo retirou o projeto após as manifestações.
Ricupero analisa que o pacote, se não for acompanhado por medidas corretivas, pode replicar experiências como a francesa, mas frisa que o temor não é justificativa para recuar nas ambições. “É preciso encontrar maneiras de compensar, como subsídios para troca de carros a combustão por carros elétricos, além de redução dos custos de operacionalização desses veículos.”
Gasparotto, da Climate Bonds, considera que o tempo até que as medidas passem a ser implementadas é uma janela de oportunidade para que os efeitos da mitigação climática não sejam desiguais.
“É preciso trabalhar ao máximo para que as propostas gerem oportunidades econômicas e postos de trabalho, seja impulsionando o des envolvimento tecnológico, seja com a construção da resiliência energética”, diz. “Os países desenvolvidos têm o papel de ajudar na transição [para a economia de baixo carbono], e é preciso compreender que os cortes terão de ser profundos.”
Um setor que já sinalizou oposição ao pacote europeu foi o das companhias aéreas. Uma das medidas apresentadas cria impostos sobre os combustíveis usados na aviação.
Em nota, a Associação Internacional do Transporte Aéreo (Iata, na sigla em inglês) disse que a proposta é “contraproducente para o objetivo da aviação sustentável”. O documento caracteriza a taxação como uma medida punitiva e argumenta que incentivos para combustíveis sustentáveis e modernização da gestão do tráfego aéreo seriam mais eficazes para que o setor contribua com a descarbonização.
Horas depois de a União Europeia publicizar o novo plano de redução das emissões, a possibilidade de algo semelhante ecoou nos EUA. Os democratas anunciaram que pretendem incluir um novo imposto sobre importações de países poluentes no projeto trilionário que vêm preparando para ser votado no Legislativo americano.
“Os EUA e a União Europeia devem pensar na liderança que podem oferecer e na mensagem que devem enviar à China e a outros países que se beneficiariam dos novos padrões que vamos promulgar”, disse o senador democrata Edward J. Markey ao jornal The New York Times.
OS PLANOS DA UE PARA O CLIMA
Metas:
• Até 2035, reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 55%, em relação aos níveis de 1990. Já houve redução de 24%.
• Até 2035, atingir neutralidade climática (zerar emissões ou emitir somente o que for capaz de reabsorver) em setores como agricultura, pecuária e manejo florestal.
• Reduzir a emissão média dos novos carros em 55% até 2030 e 100% até 2035. Assim, todos os novos carros registrados no bloco terão de ser zero poluentes, como elétricos.
• Até 2040, ter 40% da matriz energética formada por fontes renováveis.
• Atingir a neutralidade de carbono completa em 2050.
Algumas medidas propostas (ainda dependem de aprovação):
• Os países terão metas individuais de redução de poluentes, de consumo de energia e de absorção de carbono, que levarão em conta critérios como o PIB per capita.
• Setores da economia, como indústria, transportes e outros, terão metas de redução de poluentes, que irão sendo ampliadas ano a ano.
• O setor público terá de reformar 3% de seus prédios a cada ano, para torná-los menos poluentes.
• Países terão de aumentar os pontos de recarga de novos combustíveis. As estradas terão de ter um ponto de abastecimento elétrico a cada 60 km, e a cada 150 km para hidrogênio.
• Aviões e navios terão de ser abastecidos na Europa com combustíveis menos poluentes do que os atuais.
• Políticas de impostos serão usadas para estimular novos combustíveis e desincentivar os de origem fóssil, como diesel e gasolina.