Estadão Online
O mundo está aquecendo de forma perigosa e os combustíveis fósseis, além do desmatamento no Brasil, são os grandes vilões da história. É quando entra em cena o energético hidrogênio verde. O futuro combustível, que não é encontrado em grandes quantidades na natureza, precisa ser produzido por vias tecnológicas, o que faz com que cientistas de várias áreas e empresas do setor de energia passem a trabalhar em conjunto em busca do mesmo objetivo.
A busca pelo hidrogênio verde dentro dos laboratórios ocorre há algumas décadas, mas, no Brasil, um ponto de virada importante deve ocorrer nos próximos meses, mais especificamente dentro da Cidade Universitária da Universidade de São Paulo (USP). Criado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estasdo de São Paulo (Fapesp) e pela empresa Shell, o Centro de Pesquisa para Inovação em Gases de Efeito Estufa atua, desde 2016, em várias frentes. Uma delas está perto de ficar mais visível para as pessoas.
Em questão de seis meses, afirma Marcos Buckeridge, cientista referência na área de bioenergia e um dos coordenadores do Centro, uma máquina produtora de hidrogênio verde será instalada na USP, perto da raia olímpica. ‘Essa é a primeira parte do planejamento. Em seguida, vamos preparar três ônibus que serão abastecidos com o hidrogênio produzido por nós’, explica o pesquisador.
A grande inovação da iniciativa, explica o pesquisador da USP, é que o etanol será a matéria-prima usada para a obtenção do hidrogênio, que vai movimentar os ônibus pelo câmpus da Cidade Universitária, no Butantã, zona oeste paulistana. Essa trilha tecnológica desenvolvida na USP pode ser considerada pioneira em termos mundiais, segundo Buckeridge. ‘É uma pesquisa que faz parte de uma iniciativa maior. Um dos objetivos do centro é zerar as emissões da cadeia produtora de cana-açúcar ou até torná-la negativa em termos de emissões’, explica o cientista.
Tanto do ponto de vista científico quanto tecnológico, o chamado hidrogênio verde apenas recebe esse título quando a matéria-prima utilizada no início do processo vem de uma fonte renovável ou da biomassa, como no caso do etanol. Existem veículos em várias partes do mundo que já são abastecidos com hidrogênio, mas são combustíveis produzidos a partir do gás natural. É o que se padronizou chamar de hidrogênio cinza, por estar no meio do caminho entre as fontes limpas e os combustíveis fósseis.
Outra possibilidade de produção de hidrogênio, e que nutre um trilho tecnológico em franco desenvolvimento no Brasil e em todo mundo, é a partir da água. No Brasil, até o fim do ano, a empresa EDP Brasil, uma das líderes nacionais do setor de energia, vai abrir sua primeira planta-piloto de produção de hidrogênio a partir da quebra da água no Estado do Ceará.
O investimento previsto, que está sendo todo feito na cidade de São Gonçalo do Amarante, na Grande Fortaleza, é de R$ 41,9 milhões. O aporte de recursos econômicos tanto do setor privado quanto público em projetos que buscam a produção do hidrogênio verde é apenas parte da equação. A ciência e a tecnologia embarcada nos processos também estão longe de estarem totalmente dominadas.
O projeto da EDP Brasil, realizado em conjunto com grupos de pesquisa e outras empresas do setor privado, é um dos 17 projetos de produção de hidrogênio verde no Ceará. A ideia do governo do Estado nordestino é, se todos os memorandos assinados virarem realidade, criar um hub para a produção de um dos chamados combustíveis do futuro atrelado ao porto de Pecém.
Em 2023, por exemplo, está previsto o início da construção da planta de produção de hidrogênio verde da Cactus Energia Verde. O investimento será de 5 bilhões de euros. A ideia tanto do governo quanto das empresas é que as linhas de produção do hidrogênio, principalmente a partir da eletrólise da água, estejam perto dos grandes parques eólicos e solares que também estão sendo planejados para a região.
No caso da máquina de abastecer hidrogênio da USP, explica Buckeridge, existe muito desenvolvimento científico ainda para ser desenvolvido. ‘Na verdade é um reformador de etanol como a gente chama. O etanol entra de um lado e sai hidrogênio do outro, mas no meio do caminho é preciso controlar muito bem todas as reações químicas do processo’, explica o botânico da USP.
O controle das reações químicas que ocorrem no processo, além da escolha dos elementos químicos certos para que as reações catalíticas ocorram de forma precisa e eficiente, é o grande segredo da operação. No caso do uso do etanol para a produção de hidrogênio, as reações químicas ainda vão produzir monóxido de carbono, que também não pode ser lançado diretamente na atmosfera, sob pena de sujar todo o processo de produção do ponto de vista ambiental.
‘Em um segundo passo, estamos estudando onde aplicar esse carbono. Uma das possibilidades, por exemplo, é usá-lo nas hortas da universidade, que servem os bandejões da USP’, afirma Buckeridge. Os vegetais, pela fotossíntese, processam o carbono para crescer.
No caso da quebra da água, tecnologia que será usada para a obtenção de hidrogênio no Ceará, um dos pontos importantes para a neutralidade climática do processo é o tipo de energia primária que será usada para movimentar os equipamentos que farão a hidrólise da molécula da água. Como a ideia, no caso, é usar energia solar, a conta fecha. O mesmo raciocínio é válido para a energia eólica. A tecnologia da quebra da água, em larga escala, está recebendo atenção em várias partes do mundo. Os chineses estão com vários projetos em andamento.
Na prática, os dois processos, o que utiliza a biomassa como é o caso do etanol, ou o da quebra da água, estão usando uma molécula altamente energética (até quatro vez mais do que a do carvão) estocada na natureza a partir de ligações químicas com outros elementos da tabela periódica. Apesar dos resultados promissores, e de muitas associações internacionais promoverem o hidrogênio verde como uma solução milagrosa, ainda vão ser necessários muitos anos para a tecnologia, de fato, decolar.
Dados da Agência Internacional de Energia Renovável indicam que em 2050 o hidrogênio verde deve ser responsável por 12% da necessidade global de energia. O que significa 409 milhões de toneladas produzidas todos os anos. E, se a neutralidade climática for realmente atingida em todas as cadeias de produção do novo tipo de combustível, o impacto sobre o aquecimento global poderá ser grande, da ordem de até 20% na redução das emissões globais, segundo o Hydrogen Council.
‘No caso do carbono gerado pela reforma do etanol, uma das nossas outras linhas de pesquisas mostra que é possível enterrá-lo em áreas próximas das usinas (produtoras de açúcar ou de etanol) a até 4 quilômetros de profundidade. O carbono, neste caso, vai reagir com outras substâncias e ficar inerte’, explica Buckeridge. É desta forma que a cadeia da cana poderá até ficar com emissões negativas (mais absorção do que emissão de carbono) no Brasil. Outros países também pesquisam o enterramento do carbono sob diferentes caminhos.