O Estado de S. Paulo
A vitória do democrata Joe Biden para a Casa Branca abre caminho para a união dos Estados Unidos e da Europa numa “marcha verde” de pressão na direção do governo Jair Bolsonaro, o que vai exigir pragmatismo da diplomacia brasileira e do Ministério da Economia para impedir que os produtos brasileiros sejam atingidos por restrições comerciais. O Estadão ouviu especialistas na área internacional sobre o que pode acontecer na economia brasileira com a saída de Donald Trump e a chegada de Biden.
“Se nós não fizermos nada, é possível que essa nova marcha verde vá se espalhando por todos os temas e assuntos”, diz o ex-embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Sérgio Amaral, que já esteve duas vezes com Biden. Segundo ele, o futuro presidente americano é moderado e gosta do Brasil.
Presidente do conselho do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), José Pio Borges diz que Biden é o presidente dos sonhos de Wall Street e certamente não tem nenhuma simpatia pelo governo brasileiro, mas não vai agir de forma irracional e revanchista. Para ele, a disputa importante que envolve a relação Estados Unidos, Brasil e China é a decisão sobre a adoção da tecnologia 5G.
Na União Europeia e no Reino Unido, já estão em curso consultas públicas para aplicar restrições a países que desmatam e tributar produtos com alto índice de emissão de carbono. A expectativa é que Biden se alinhe a essas políticas no futuro.
“Isso pode se materializar em tarifas adicionais para as exportações brasileiras. O alvo serão os produtos brasileiros que auxiliam no desmatamento ou geram emissões de carbono”, diz Welber Barral, consultor internacional e ex-secretário de Comércio Exterior.
No agronegócio, que pode ser atingido por medidas restritivas, a preocupação do momento é com o futuro do dólar. “Nós estamos muito mais preocupados com o que vai acontecer com o dólar. Isso, sim, a vitória de Biden modifica”, diz o deputado Alceu Moreira (MDB-RS), presidente da Frente da Agropecuária, uma das mais poderosas do Congresso.
Leia, a seguir, as análises de quatro especialistas
Sérgio Amaral, ex-ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e conselheiro do CEBRI
Entre os vitoriosos na eleição, está um grupo mais jovem, militante, aguerrido, que tem compromisso com a questão ambiental. Certamente essa será uma pressão sobre o Congresso, para que sejam tomadas medidas em relação à Amazônia para combater o desflorestamento. Essas medidas são acompanhadas de restrições comerciais ou outro tipo de restrição.
O embaixador Sérgio Amaral, em Washington, atrás do presidente Jair Bolsonaro Foto: Alan Santos/PR
O que é preocupante é que essa nova postura dos Estados Unidos coincide com a postura da Europa. Se somar o peso da Europa com o dos Estados Unidos, juntos eles representam quase metade das nossas exportações. Não quer dizer que necessariamente haverá medidas, se o Brasil demonstrar que existe um compromisso com metas e resultados concretos. Mas, se nós não fizermos nada, é possível que essa nova mancha verde, como eu chamo, vá se espalhando por todos os temas e assuntos.
É uma força muito grande e que às vezes nós não entendemos muito bem. Para os jovens, a questão ambiental é como se fosse a utopia do século XXI. Boa parte das decisões em matéria de comércio e de economia é tomada em função de um compromisso ambiental que já chegou até às empresas financeiras.
É necessário que o Brasil leve muito a sério a questão ambiental. O que é possível dizer é que existem forças e correntes políticas fortes em favor de medidas mais concretas na área ambiental. Agora, que medidas serão essas é uma especulação neste momento.
Por outro lado, não temos qualquer problema ambiental com a China. É um momento de tomarmos mais cuidado com as várias provocações desnecessárias que foram feitas à China. É hora de preservarmos o mercado chinês, caso contrário teremos nos indisposto com todos aqueles que compram de nós: Europa, Estados Unidos, China e Argentina. Não é uma política inteligente.
José Pio Borges, presidente do conselho do Cebri e ex-presidente do BNDES
A vitória de Biden para a área de economia foi o sonho de Wall Street. Biden vai pacificar não só os Estados Unidos, mas moderar as relações com a Europa e com o mundo. A Câmara será democrata e o Senado republicano, o que conterá os excessos. É uma demonstração de que haverá certa moderação nas medidas. Por isso, o mercado bombou na quinta e sexta-feira passadas. Haverá pragmatismo de parte a parte.
Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, recebe o presidente Jair Bolsonaro Foto: Isac Nóbrega/PR
O próprio Bolsonaro deu na sexta-feira uma declaração mais moderada, meio que aceitando a derrota. O Trump não fez nada pelo Brasil, pelo contrário. Ele elevou tarifas, forçou o Brasil a comprar etanol de milho e não deu a contrapartida que a indústria havia pedido, que era a de importarem açúcar. Na conversa com a Casa Branca, a negociação foi essa.
O Brasil fez concessões, puxou o saco, fez o diabo da maneira mais humilhante possível e os Estados Unidos não deram nada. A única coisa que eles fizeram foi fazer um bullying em relação ao 5G, que não sabemos se vai funcionar. O que temos a perder? Muito pouco, pois não estávamos ganhando nada.
Certamente o governo que assumirá não tem nenhuma simpatia pelo governo brasileiro. Vai agir de forma irracional e revanchista? Não vai. O americano é profissional. A única disputa importante agora que envolve a relação Estados Unidos e China é o 5G. Essa decisão deveria ser a mais técnica possível e, de preferência, em conjunto com outros países.
O governo Trump estava fazendo um bullying de uma maneira descarada. Sob esse aspecto até que melhora, porque é capaz de tomar uma decisão mais isenta e não por simpatia desmesurada pelo Trump. O Brasil tem grandes interesses econômicos com a China em termos de comércio. O Brasil exporta três vezes mais para a China do que para os Estados Unidos. Temos que respeitá-los.
O Trump tem uma maneira de agir de empresário que gosta de imitar gângster. É uma retórica agressiva, mas não necessariamente seguida por atos. Certamente Biden vai ter uma política mais racional. Biden certamente vai tentar reverter o dano que o Trump fez ao multilateralismo.
Welber Barral, consultor internacional e ex-secretário de Comércio Exterior
O comércio entre Brasil e Estados Unidos, nos últimos dez anos, tem ficado muito estável. Um fluxo de comércio de US$ 60 bilhões dos dois lados. Mas os Estados Unidos perderam participação nas exportações, que estão crescendo para a Ásia, principalmente para a China. O que mudaria esse cenário é se houvesse um acordo de comércio, mas nem o Trump mencionou isso.
Soja
Agricultores do Brasil e dos Estados Unidos são concorrentes na venda de soja (foto), milho, algodão e carne para os chineses e temem queda em suas exportações. Foto: Adilvan Nogueira/Estadão
Os acordos que o Bolsonaro assinou foram ou muito técnicos, de facilitação de comércio, mas sem grande impacto para criar comércio, ou acordos setoriais, como o da base de Alcântara. O Brasil abriu a porta de etanol para os Estados Unidos e sofreu restrições no aço e alumínio.
Em termos de política comercial, algumas coisas vão continuar com Biden. A disputa com a China de questionar a OMC vai continuar, mas vamos ter ações mais previsíveis dos Estados Unidos. A grande questão do governo Trump foi a imprevisibilidade e adoção de medidas heterodoxas, como colocar tarifa em cima de 600 produtos com base na cabeça dele, sobre itens que acabavam afetando a cadeia de produção e gerando insegurança.
Mas a América Latina como um todo não é prioridade para a política externa norte-americana. O governo Biden vai se alinhar com a Europa em termos de meio ambiente. Neste alinhamento, o Brasil tem uma imagem negativa. Hoje, na União Europeia e no Reino Unido, estão em curso algumas consultas públicas para aplicar restrições em países que desmatam e para tributar produtos que tenham alto índice de emissão de carbono, algo que pode afetar futuramente as exportações brasileiras.
As consultas estão abertas e vão se tornar normas alinhadas com as obrigações do Acordo de Paris. Tudo isso pode se materializar em tarifas adicionais para as exportações brasileiras. O alvo serão os produtos brasileiros como carne, madeira, soja. Toda a cadeia do agronegócio poderá ser eventualmente afetada.
Deputado Alceu Moreira (MDB-RS), Presidente da Frente da Agropecuária do Congresso, que conta com 286 parlamentares
É uma questão eminentemente diplomática. Quando há uma situação como essa de modificação de governos com outra ideologia, tem que se fazer uma reposição diplomática. Os Estados trabalham muito mais com interesses pragmáticos do que ideológicos.
O deputado Alceu Moreira (MDB-RS) Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados
Biden estava fazendo um debate para seus eleitores, que consideram o tema ambiental como importante. Está longe de ser uma intenção do governo fazer isso ou aquilo, até porque o governo brasileiro tem condições de mostrar a verdade sobre isso. O Brasil tem condições de mostrar para o mundo que é o País que mais preserva. E nós, da frente, queremos tratar isso com absoluta serenidade. Sempre vai vencer o pragmatismo.
Em alguns momentos somos concorrentes mortais e em outros momentos parceiros comerciais, e temos de tratar tudo de acordo com interesses específicos do que está em debate.
O prejuízo que o setor agrícola tem sofrido com a desinformação e com a falta de competência para fazer uma comunicação no exterior já está acontecendo com Trump. Temos que cuidar do interesse do nosso País. A questão da segurança alimentar do mundo é fundamental e não dá para agir com radicalismo ideológico.
Antes de o governo fazer qualquer coisa, haverá uma discussão diplomática. Brasil e EUA têm muito mais interesse envolvido do que essa narrativa eventual de um debate da presidência. Estamos, na verdade, somatizando isso, dando eco para um grito que não é tão grande. Estamos muito mais preocupados com o que vai acontecer com o dólar. Isso, sim, a vitória de Biden modifica.