O Globo
Soja, macaúba, agave, palma, carinata e cártamo. São apenas algumas das matérias-primas na mira de empresas do setor de petróleo e gás para ampliar a produção de biocombustíveis no Brasil. Investimentos nessa área de Petrobras, Shell, Acelen (do fundo Mubadala, dos Emirados Árabes) e Refinaria Riograndense somam ao menos US$ 20 bilhões (cerca de R$ 120 bilhões, no câmbio atual) em várias frentes, como laboratórios, compra de terras e construção de biorrefinarias para a produção de diesel verde, querosene de aviação sustentável (SAF, pela sigla em inglês) e bunker renovável, usado para abastecer navios.
Para especialistas, a tendência reflete as iniciativas de descarbonização contra o aquecimento global que as petroleiras tiveram de abraçar e programas de incentivo do governo, como o Combustível do Futuro, oficializado recentemente pelo presidente Lula e à espera de regulamentação.
Para Ana Mandelli, diretora executiva de Downstream do Instituto Brasileiro do Petróleo (IBP), as perspectivas são promissoras no Brasil, que é referência global no setor desde os anos 1970, com a criação do Proálcool para substituir derivados de petróleo por etanol de cana-de-açúcar nos carros.
— Temos em abundância boa parte dos recursos naturais necessários para a produção de biocombustíveis, energia renovável, como solar e eólica, além de bastante área. Entretanto, precisamos ser ágeis nas definições regulatórias, tributárias e logísticas, transformando nosso potencial e ambições em realidade, não somente focando nas necessidades do nosso mercado interno, mas também nas oportunidades de exportação — diz Mandelli, para quem a Lei do Combustível do Futuro reforça o compromisso do país com as metas de corte de emissões de gases do efeito estufa firmadas no Acordo de Paris.
A Petrobras quer investir US$ 2,1 bilhões nos próximos anos para desenvolver e ampliar o mercado de biocombustíveis como biodiesel e biometano e acelera planos para aumentar a produção do diesel verde (HVO), com 100% de conteúdo renovável. Hoje, a estatal produz o diesel coprocessado, com 5% desse conteúdo 100% renovável (chamado R5) na composição final do diesel vendido na bomba.
Diesel renovável
Segundo William Nozaki, gerente executivo de Transição Energética da Petrobras, a estatal pode elevar para 10% a fatia do diesel verde no diesel comercializado nos postos, a depender da demanda do mercado. Já são cinco as refinarias aptas.
O próximo passo é ampliar para a Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, e o antigo Comperj, no Rio de Janeiro, a partir de 2028. Nos primeiros nove meses do ano, a estatal produziu 70,6 milhões de litros de diesel R5, quase cinco vezes os 15 milhões processados no mesmo período de 2023.
Em paralelo, a Petrobras busca ampliar o portfólio de matérias-primas, hoje concentrado em soja e palma. A ideia é reforçar a atuação da subsidiária PBio. Recentemente, a estatal anunciou aportes de US$ 2,2 bilhões só para voltar ao setor de etanol com parcerias e a criação de uma nova empresa para produzir 2 bilhões de litros até 2029.
Segundo previsão da Petrobras e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), a demanda por biocombustíveis deve subir 47%, de 37,1 bilhões de litros em 2023 para 54,8 bilhões em 2040.
— Temos acordos que observam caminhos e oportunidades. Uma parcela da produção de matérias-primas via PBio. Estamos avaliando parcerias e sinergias com distribuidoras. A atuação da Petrobras hoje é pautada pela oportunidade de transição energética e viabilidade econômica. A regulação nacional e internacional reforça a rota dos biocombustíveis. No Brasil, o Combustível do Futuro sinaliza a presença deles como essencial. O Brasil tem uma vantagem inquestionável na área — avalia Nozaki.
A Petrobras também pretende acelerar a produção de querosene de aviação sustentável (SAF) e combustível marítimo com 24% de biodiesel de segunda geração, produzido a partir de resíduos agroindustriais (B24).
A estatal quer construir a primeira fábrica no Brasil de e-metanol (metanol verde), combustível para navios produzido a partir de hidrogênio verde e CO2 biogênico, proveniente de usinas de etanol ou de aterros sanitários.
Questão de escala
Magda Chambriard, presidente da Petrobras, já reconheceu que os preços dos combustíveis de fontes renováveis ainda são mais altos em relação aos de origem fóssil, mas avalia que isso pode mudar conforme o aumento da demanda e da escala de produção. Recentemente, ela disse que a empresa já vê aumento significativo na demanda por bunker renovável na Ásia.
Outros braços do governo veem os biocombustíveis como um vetor estratégico. Em evento recente, Aloizio Mercadante, presidente do BNDES, destacou o potencial de produção e a forte demanda do mercado.
Citou que o banco, ao fazer um edital com a Finep para selecionar projetos de biorrefinarias, recebeu pedidos de financiamento que somam R$ 167 bilhões para uma oferta de apenas R$ 6 bilhões. O banco vai aprovar ainda neste ano outros R$ 4 bilhões em crédito via Fundo da Marinha Mercante (FMM) para combustíveis marítimos verdes.
— O Brasil tem liderança em biocombustível. Começamos a produzir etanol há 50 anos. Ninguém tem a tecnologia que temos, como a do etanol de segunda geração. Temos um potencial muito importante para disputar o mercado. A aviação vai ter que ter combustível renovável. Na navegação, o potencial é maior ainda, é 90% do comércio mundial — diz Mercadante.
A gaúcha Riograndense, que tem entre seus acionistas Petrobras, Braskem e Ultrapar, prepara-se para iniciar, em 2025, a produção comercial de combustíveis de fontes renováveis como diesel, bunker, SAF e bioGLP (gás de cozinha).
Além disso, associou-se à dinamarquesa Topsoe para investir US$ 900 milhões em uma nova unidade de produção, que será definida em julho de 2025. Segundo Felipe Jorge, diretor-superintendente da refinaria, a matéria-prima é o ponto-chave do ramo:
— Há uma regionalização, pois nunca vai haver uma solução única. Além da soja, olhamos para outras alternativas, como carinata, cártamo, camelina, além da gordura animal. Estamos vendo os potenciais, olhando para os movimentos do mundo. Com a transição energética, vamos ter soluções distintas.
Uma das apostas da empresa é o SAF, o combustível sustentável de aviação, setor apontado como um dos vilões do efeito estufa. A nova unidade poderá produzir 800 mil toneladas por ano. Segundo Jorge, já há conversas com empresas internacionais interessadas na compra do novo combustível:
— O segmento é global. As empresas têm compromissos claros, e esse movimento vai ganhar tração, já que elas já estão se preparando para comprar combustíveis com menor teor de emissão. Como estamos em uma transição, os preços ainda são altos, mas, ao fim do dia, quem regula o preço é o mercado.
Quem também mira o mercado global é a Acelen, que pretende produzir diesel verde e SAF a partir da macaúba, uma palmeira nativa de florestas tropicais. É um projeto orçado em US$ 3 bilhões, valor que pode chegar a US$ 15 bilhões nos próximos dez anos, segundo o Mubadala.
Para isso, a empresa está construindo um centro de tecnologia em Montes Claros (MG), que deve ser inaugurado em janeiro de 2025, para produzir 10 milhões de mudas por ano.
— Nesse centro haverá um trabalho genético de escolha das variedades da macaúba, cujo objetivo é antecipar a produção. Será uma fábrica de mudas, que vai abastecer as fazendas que vamos comprar e também áreas de agricultura familiar que vamos apoiar. Já estamos em fase final de compra da primeira fazenda no Recôncavo Baiano — revela Marcelo Lyra, vice-presidente de Comunicação, ESG e Relações Institucionais da Acelen.
A empresa quer ter 180 mil hectares de área plantada entre Bahia e Minas para processar 1 bilhão de litros por ano de SAF ou diesel verde. Essa produção será escoada para uma nova biorrefinaria em Mataripe (BA), que será construída ao lado da refinaria comprada da Petrobras no governo Bolsonaro.
A decisão será confirmada no primeiro trimestre do ano que vem, com o objetivo de começar a produzir em 2027, inicialmente com óleo de soja, milho, gordura animal e resíduos de cozinha, diz o executivo. A macaúba só começa a produzir entre 3,5 e 4 anos após o plantio. O foco é a exportação para Europa e EUA.
Agave tem potencial
Já a Shell investe mais de R$ 100 milhões para estudar o agave, usado para fabricar tequila, na produção de etanol. A companhia, em parceria com a Unicamp, também conta com um laboratório para estudar o genoma do insumo, de forma a acelerar o crescimento e selecionar a espécie ideal para a produção do biocombustível. A empresa ainda está desenvolvendo máquinas para melhorar a colheita em uma área em Conceição do Coite, na Bahia.
— Além do etanol, é possível ainda fazer biogás a partir dos resíduos. Hoje, não existe no mundo o uso do agave para etanol. Vamos estudar até 2027 para avaliar se é possível chegar a um preço competitivo e viável. No laboratório, estamos desenvolvendo estudos para colher entre 3 e 4 anos, em vez de cinco anos — afirma Alexandre Breda, gerente de Tecnologia de Baixo Carbono da Shell.