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Cleveland Prates*
Na última semana, o governo encaminhou ao Congresso a Medida Provisória 1.063/2021, cujo objetivo é elevar a concorrência na distribuição e comercialização de combustíveis no país.
Em realidade, essa medida é apenas uma pequena parte de um conjunto de sugestões que foram consolidadas em um documento divulgado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) em maio de 2018 sob o título “Repensando o setor de combustíveis: medidas pró-concorrência”.
Possivelmente por ser fruto de um amadurecimento de todo um Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, e por contar com a contribuição de estudos técnicos da Secretaria de Promoção da Produtividade e Advocacia da Concorrência (Seprac) do Ministério da Fazenda, esse documento revela um conjunto bem estruturado de alterações no setor que, se implementadas, poderão ter um impacto positivo para o mercado de combustíveis, com reflexo sobre o consumidor final.
Em linhas gerais, essas medidas podem ser divididas em quatro grupos. O primeiro deles tem por objetivo reduzir ineficiências hoje vigentes no setor e passa pela permissão para se criar postos de autosserviços (postos nos quais os clientes abastecem seus próprios veículos, a exemplo de outros países) e pela revisão de normas sobre o espaço urbano, que muitas vezes impõe restrições à entrada de novos concorrentes.
O segundo grupo é composto por um conjunto de medidas que buscam desestimular práticas que facilitam a formação de cartel. Nele estão incluídas a constituição de um sistema de monitoramento de informações mais eficiente por parte dos órgãos regulador e antitruste e a extinção do modelo de substituição tributária do ICMS, que, nos moldes vigentes, cria um preço focal, favorecendo a cartelização entre concorrentes.
O terceiro tem por foco elevar o grau de informação para o consumidor final, de maneira que seja possível identificar quais postos efetivamente competem entre si. Como um mesmo dono (ou grupo econômico) pode ser proprietário de postos de bandeiras distintas (por exemplo, Ipiranga e BR), o consumidor pode interpretá-los como concorrentes diretos, quando na realidade não os são.
Já o último grupo, de caráter mais estrutural, libera para produtores a venda direta de etanol aos postos, possibilita distribuidores importarem combustíveis diretamente e permite a verticalização entre os segmentos de distribuição e varejo de combustíveis. É na linha desse quarto grupo que a MP 1063/21 procura atuar.
A ideia é permitir que postos de combustíveis adquiram o etanol diretamente do produtor ou do agente importador, sem passar necessariamente por um distribuidor. O argumento econômico é o de que, com isso, elimina-se dupla margem de lucro hoje existente na relação distribuidor-varejista (postos) e eventuais ineficiências no processo de venda e entrega do combustível, quando da obrigação de intermediação pelo distribuidor.
Ademais, a MP traz a possibilidade de que mesmo os postos com bandeira (BR, Ipiranga, etc.) possam adquirir e vender combustíveis de terceiros com quem não mantêm relações contratuais, desde que o consumidor seja devidamente informado de qual combustível estará adquirindo. Destaque-se que, neste caso, foi tomado o devido cuidado para que sejam preservados contratos de exclusividade hoje vigentes entre distribuidores e varejistas.
A expectativa é que, com essas medidas, a concorrência se eleve e o consumidor pague um combustível mais barato ao longo do tempo. De toda forma, é importante ter clareza de qual é o real alcance das sugestões do CADE e, particularmente, do quanto contido na MP encaminhada ao Congresso.
Em realidade, a distribuição e revenda representam juntas uma pequena parcela do preço dos combustíveis (algo em torno de 12%, segundo dados da Petrobras). Já o custo do etanol anidro chega a 16% do preço total da gasolina. Em outras palavras, é no máximo sobre essa composição de custos que a MP pode ter algum alcance.
Há também questões relacionadas a disfunções de ordem tributária e criminal neste setor, que podem ser agravadas com esta MP e que precisam ser resolvidas. Por exemplo, alguns críticos argumentam que a permissão de venda direta poderá elevar fraudes, adulteração e sonegação, algo que não aconteceria no modelo atual. Entretanto, essas não me parecem justificativas razoáveis para não se adotar as medidas propostas.
Em primeiro lugar porque esses efeitos deveriam ser comparados aos efeitos negativos derivados da menor concorrência hoje vigente, que se materializam nos preços mais elevados e consequente redução da demanda, menor arrecadação em termos de volume de faturamento, menor nível de emprego, custo de transporte mais elevado, etc. Ou seja, a análise deve sempre considerar o efeito líquido.
Em segundo porque fraudes, adulteração e sonegação deveriam ser combatidas por uma atuação mais eficiente do Estado e não pela introdução de ineficiências no mercado. E isso passa por melhorar os instrumentos fiscalizatórios e punitivos, o que envolve também a melhor compreensão por parte do Judiciário sobre os efeitos de uma eventual concorrência desleal.
Em conclusão, apesar de positiva, o que está em jogo com a MP 1063/21 não é algo que pacifique as discussões sobre os preços elevados dos combustíveis, que tanto têm incomodado os brasileiros. Há que se ter em mente que a maior parcela dos seus custos está relacionada ao preço do barril do petróleo no mercado internacional (que está fora do controle do governo) e do valor do dólar, que depende de uma atuação mais responsável das contas públicas nacionais.
*Cleveland Prates
https://economia.uol.com.br/colunas/cleveland-prates/
Economista especializado em regulação, defesa da concorrência e áreas correlatas. Atualmente é sócio-diretor da Microanalysis Consultoria Econômica, coordenador do curso de regulação da Fipe e professor de economia da FGV-Law/SP. Foi Conselheiro do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e secretário-adjunto da Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda.