Folha de São Paulo
Logo no início de seu livro, “Petrobras, a Luta pela Transformação”, o ex-presidente da estatal Roberto Castello Branco narra o momento em que percebeu que seria demitido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro após pouco mais de dois anos no comando da companhia.
Fora convocado a reunião em Brasília, em fevereiro de 2021, em meio à segunda onda da Covid-19 no Brasil para justificar reajustes dos preços dos combustíveis. Chegou usando máscara e óculos de proteção, respeitando padrões recomendados pela OMS (Organização Mundial de Saúde).
“Chegando ao gabinete da Presidência da República, me deparei com uma sala cheia de gente, na qual praticamente ninguém usava máscara, e com pessoas que se cumprimentavam efusivamente com abraços apertados”, recorda.
No voo de volta ao Rio de Janeiro após o encontro, em que defendeu o acompanhamento das cotações internacionais do petróleo, percebeu que seus dias à frente da estatal estavam contados. “Aquela batalha foi perdida, pois atender às demandas do governo estava completamente fora de cogitação”.
Castello Branco presidiu a Petrobras de janeiro de 2019 a abril de 2021, convidado pelo ex-ministro da Economia, Paulo Guedes. Saiu sob ataque de bolsonaristas, não só pela alta da gasolina, mas também por adotar medidas de prevenção na pandemia, como o trabalho remoto.
No livro, defende que sua gestão alterou a cultura da estatal, instituindo valores como eficiência e meritocracia, e que a estratégia de alocação de capital no principal negócio da companhia, o pré-sal, ajudou a recuperar o valor perdido durante a crise no governo Dilma Rousseff (PT).
Em entrevista à Folha, Castello Branco disse ver hoje um “retorno ao passado”, com a indicação de membros do governo ao conselho de administração e aposta em negócios que considera prejudiciais, como a produção de fertilizantes.
Nesta semana, a presidência do conselho da estatal voltou a ser tema de especulações, após a indicação para a chefia da ANP do atual titular do cargo, Pietro Mendes.
Senti que a situação era insustentável. Existia pressão contra aumento de preços de combustível e, por outro lado, o mercado internacional estava subindo. Eu teria que acompanhar. E isso não dava para negociar. Acho que eu fui aparentemente bem na reunião, eles apoiaram meus argumentos, mas eu sabia que em pouco tempo seria demitido.
A preocupação deles era especificamente com o preço. Eu contestava isso porque em 2021, os preços de diesel estavam mais baratos do que no final de 2019. E estava ocorrendo uma aceleração da demanda por frete, o que significa que os caminhoneiros estavam trabalhando, a situação estava boa para eles.
No final de 2020, o mercado mudou, os preços passaram a subir [após a pandemia] e tínhamos que acompanhar o mercado. Então, eu já sentia um certo mal-estar. Mas isso [pedido direto do presidente] não aconteceu em momento algum. Houve pressões indiretas, mas não ligações para me pressionar.
Esse é o grande problema dos presidentes da Petrobras. Uma das razões pelas quais eu queria privatizar as refinarias é diluir isso, porque hoje cerca de 80% dos combustíveis são produzidos pela Petrobras. Então, quando as pessoas acham que o combustível está caro, sabem o endereço, é a Petrobras. Vamos pressionar o presidente da República e ele vai mudar isso para a gente. É basicamente isso que acontece no Brasil há muitos anos.
Primeiro, nós tivemos a pandemia, que inviabilizou. O processo de venda de um ativo grande como uma refinaria, além de consultar os data rooms, demanda visita às instalações. Com a pandemia, isso se inviabilizou. Outro ponto foi o falatório sobre controle de preços. Se eu vou comprar um negócio cujo produto é combustível, já é difícil acreditar, porque é um país que tem uma longa tradição de interferir nos preços.
Eu vejo que a companhia deixou novamente de prezar pela eficiência na alocação do capital. O fertilizante não é um bom negócio no Brasil. Nós somos um dos maiores consumidores e um dos maiores importadores de fertilizantes. Se fosse um bom negócio aqui, estava cheio de empresa multinacional querendo produzir.
A gente quis vender a Araucária Nitrogenados e ninguém apareceu para comprar. Tentamos arrendar, ninguém apareceu. Para as plantas de Sergipe e Bahia, só apareceu uma empresa interessada em arrendar, a Unigel. Para o projeto de fertilizantes em Mato Grosso do Sul, vieram os russos, olharam, ficaram em cima e foram embora. Se é um negócio que ninguém quer, não deve ser bom. O que faz uma companhia de petróleo nisso tudo, sendo que já perdeu dinheiro com essa história?
A Lyondell chegou a fazer uma proposta firme, e muito boa, por sinal. Mas os problemas com a Odebrecht acabaram inviabilizando o negócio. O problema é que o negócio da Petrobras é produzir petróleo. Ela é especialista em petróleo de águas profundas e ultraprofundas. A Petrobras tem alguns dos melhores geólogos engenheiros de petróleo do mundo, tem uma tecnologia sofisticada, ganha prêmios internacionais… Por que eu vou investir no negócio que eu não sei direito de fazer?
É um retorno ao passado. É por isso que o último capítulo do livro é sobre privatização. A Petrobras é uma empresa de economia mista, tem o Estado representado pelo governo e tem a iniciativa privada. Isso não dá certo, é insustentável. Ou o governo decide estatizar, compra todas as ações e faz o que bem entender ou privatiza. Mas desse jeito não dá, está prejudicando alguém que investiu suas poupanças lá para obter retorno.
Mas porque esse debate não foi instaurado no governo Bolsonaro? O sr. chega a dizer no livro que os militares e a esquerda têm visões parecidas sobre empresas estatais…
Esse debate foi interditado, a instrução que eu recebi foi que existiam três empresas que não seriam privatizadas naquele governo: Petrobras, Caixa Econômica e Banco do Brasil. Eu acho que foi com medo de gerar um custo político alto.
Depois, no fim do governo, houve declarações sobre privatizar a Petrobras, mas já era muito tarde. Não deve ter sido um fator determinante, mas os militares são um foco de oposição. Até pelo exercício da função deles de defender a pátria, eles tendem a ser, principalmente os do exército, contrários à privatização.
Esse é um dos problemas da Petrobras. Se você pegar desde o início da existência da Petrobras, o mandato médio de cada presidente é um ano e meio. Eu fui até um presidente longevo, com dois anos e três meses. Mas, na iniciativa privada, a média é cinco a dez anos. Eu acho que isso é muito sério para a empresa, gera instabilidade, não só pela troca do presidente, mas também há troca de diretores, gerentes. A empresa fica muito instável, os projetos sofrem soluções de continuidade.
Eu achei engraçado isso. Eu não trabalho, mas a companhia está indo muito bem, então eu devo ser mágico. Eu tinha uma responsabilidade grande com dezenas de milhares de pessoas. Nós, inclusive, contratamos o Instituto Einstein para nos dar consultoria, o que fazer, dedicamos um volume de recursos grandes para proteger as pessoas, usamos todos os meios para proteger as pessoas, e infelizmente várias pessoas morreram.
Acho que o Brasil vai se convencer que é um tremendo desperdício ter bilhões investidos em uma empresa estatal, cujas atividades podem ser feitas de forma melhor por empresas privadas, em vez de usar aqueles recursos para pagar dívida, investir mais em saúde e educação, focar na pobreza. A sociedade brasileira vem se convencendo de muitas coisas que não acreditava no passado, muitas empresas estatais foram privatizadas, o combate à inflação se tornou uma prioridade. Eu acho que no futuro isso tende a acontecer. Quando, eu não sei.