Valor Econômico
Brasil tem potencial para se transformar num dos maiores fornecedores do mundo nessa cadeia de valor que pode trazer receita anual de R$ 150 bilhões em 2050
O hidrogênio verde (H2V) será o combustível da próxima década, concordam os especialistas. Também não há dúvidas sobre a vocação do Brasil para se tornar um dos maiores fornecedores globais do “petróleo do futuro”, beneficiado pela abundância de energia limpa e por vantagens logísticas. O desafio é transformar em realidade o potencial identificado por consultorias, como a alemã Roland Berger, que estima para o país uma receita anual de R$ 150 bilhões nessa cadeia de valor em 2050. Várias empresas fazem investimentos de vulto, antecipando-se à regulamentação do mercado, que ainda está em debate.
Bahia, Ceará, Pernambuco, Minas Gerais e Rio de Janeiro estão entre os Estados com melhores condições para receber os novos ativos. No Polo Petroquímico de Camaçari (BA), a multinacional brasileira de fertilizantes Unigel acaba de anunciar novos investimentos no primeiro projeto em escala industrial no país. Sua fábrica de hidrogênio renovável, que entra em operação no fim do ano e já tinha duas fases previstas, terá uma terceira até 2027. A projeção é de um aporte total de US$ 1,5 bilhão (R$ 7,6 bilhões), com 600 megawatts (MW) de capacidade de eletrólise, a quebra da molécula da água por meio de reações químicas com o uso de corrente elétrica.
“No fim da fase 3, vamos estocar energia equivalente à de uma usina Angra 1 na forma de amônia verde”, compara o diretor-executivo da Unigel, Luiz Felipe Fustaino. Os equipamentos são fornecidos pela thyssenkrupp, que tem grande interesse no mercado brasileiro. Seu diretor-executivo e presidente da Câmara Brasil-Alemanha de São Paulo, Paulo Alvarenga, ressalta a importância da criação de uma política industrial, que incentive não apenas a fabricação local, como também o consumo. Em março, uma delegação da Alemanha esteve no Brasil para discutir oportunidades de cooperação e negócios entre os dois países.
“O hidrogênio verde é um elemento estratégico na transição justa para a economia de baixo carbono, principalmente se considerado o equilíbrio entre acessibilidade, estabilidade e sustentabilidade”, diz o vice-presidente sênior da Siemens Energy para a América Latina, André Clark, que também preside o conselho de administração da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib). “Para que as metas de redução de emissões sejam alcançadas no mundo, o consumo de hidrogênio terá de aumentar seis vezes nos próximos 30 anos, especialmente em usos industriais”, afirma.
A Siemens Energy firmou um memorando de entendimento (MoU, na sigla em inglês) com a brasileira Quinto Energy para desenvolver o projeto de uma usina de eletrolisadores também no Polo de Camaçari. Com primeira etapa prevista para 2025, a planta deve produzir 1 milhão de toneladas anuais de H2V a partir da energia gerada por cinco complexos híbridos (eólicos e solares) da Quinto Energy na Bahia.
Previsibilidade da demanda é um desafio mundial para dar segurança aos investidores, avalia o líder em hidrogênio da Associação Brasileira de Energia Eólica e Novas Tecnologias (ABEEólica), André Themoteo. Ele destaca a importância da criação de um arcabouço regulatório que leve à ampliação do consumo de H2V, especialmente nas indústrias de aço, cimento e fertilizantes, a partir da meta assumida pelo Brasil no Acordo de Paris. A vice-presidente de hidrogênio da Associação Brasileira de Energia Solar (Absolar), Camila Ramos, também defende os incentivos públicos aos novos projetos. “É uma grande oportunidade de reindustrialização do Brasil”, destaca.
O Complexo Industrial e Portuário do Pecém, no Ceará, desponta como um importante polo exportador de H2V por suas vantagens competitivas: potencial de energia renovável, complementaridade entre geração solar durante o dia e eólica à noite, localização favorável e joint-venture com o porto de Roterdã, nos Países Baixos. Existem 24 MoUs assinados. Oito empresas anunciaram investimentos que somam R$ 29,7 bilhões e 14,1 GW de potência, informa Jurandir Picanço, consultor de energia da Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec). Três delas (Casa dos Ventos, AES e Fortescue) já firmaram pré-contratos.
Em Pernambuco, o Complexo Industrial e Portuário de Suape tem atuado em duas frentes para desenvolver a cadeia de valor do H2V: comercial e projetos de pesquisa e desenvolvimento. Seus diferenciais incluem a infraestrutura de cabotagem para apoio a projetos eólicos offshore e a proximidade da refinaria Abreu e Lima, da Petrobras. Até o momento, 13 empresas manifestaram interesse, informa o diretor-presidente do Complexo Industrial e Portuário de Suape, Marcio Guiot. Uma delas é o grupo francês Qair, que planeja investir US$ 6,95 bilhões (R$ 35,1 bilhões) em uma fábrica com capacidade de 2.240 MW.
O porto do Açu (RJ) tem 2,4 gigawatts (GW) em projetos de energia renovável em desenvolvimento, entre plantas de hidrogênio verde, solar e eólica offshore, que atuarão em sinergia, afirma seu diretor-geral, José Firmo. Um memorando de entendimento firmado com a Shell Brasil prevê a construção de uma fábrica-piloto de H2V até 2025. Com a Casa dos Ventos e a Comerc Eficiência, o acordo prevê a construção de uma usina com capacidade de 2 GW. Há também MoUs firmados com a Equinor, a Neoenergia e a EDF Renewables.
A primeira fábrica de eletrolisadores de hidrogênio verde da América Latina será construída em Belo Horizonte (MG), a partir da ampliação de uma unidade de compressores do grupo alemão Neuman & Esser (NEA). Com investimento inicial de R$ 75 milhões, o empreendimento deve entrar em operação no primeiro trimestre de 2024. “Minas Gerais tem muitos consumidores potenciais nos setores de mineração, siderurgia e cimento, além de contar com a maior malha viária do país e com muita energia renovável”, lembra Marcelo Veneroso, diretor-presidente da Hytron, empresa do grupo.
Em dezembro, a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) lançou a primeira certificação brasileira de hidrogênio, focada no atendimento a projetos-piloto. A proposta é atestar que o insumo provém de fontes de energia limpa ou com baixo teor de carbono. Uma versão preliminar foi criada a partir de reuniões com 200 representantes da cadeia produtiva, com base nas exigências do principal cliente potencial, a Europa, e nas particularidades do sistema elétrico brasileiro. “Em seis a oito meses, teremos a certificação das três primeiras empresas”, diz Talita Porto, vice-presidente do conselho de administração da CCEE.
Em abril o Banco Mundial convidou a CCEE para participar de um grupo de trabalho para facilitar o reconhecimento internacional do hidrogênio certificado. Outra iniciativa com participação da CCEE é o Comitê Internacional de Produção e Transmissão de Energia Elétrica (Cigre), que conta com organizações de 11 países. “A intenção é ter diretrizes até 2024, para que possam ser usadas pelas empresas”, acrescenta a executiva.
Uma fonte promissora de hidrogênio renovável é o biometano, que tem potencial para produzir 7 milhões de toneladas por ano, estima a Associação Brasileira de Biogás (Abiogás). Sua vantagem é ter mais eficiência e menor custo que a eletrólise, argumenta Tamar Roitman, gerente-executiva da organização. “É provável que a geração a partir do biogás tenha uma intensidade de carbono ainda menor, porque estamos falando de resíduos.” A primeira fábrica para gerar hidrogênio verde a partir de biometano está sendo implantada pela Yara, em Cubatão (SP), com insumo vendido pela Raízen, e deve entrar em operação em 2024. A intenção é produzir nitratos para aplicação industrial e fertilizantes nitrogenados com baixa emissão de carbono.
Um projeto de pesquisa de R$ 50 milhões para conversão de etanol em hidrogênio renovável está sendo desenvolvido pela Raízen com a Shell Brasil, a Hytron, a Universidade de São Paulo (USP), o Instituto Senai de Inovação em Biossintéticos e Fibras e a Toyota. A parceria prevê a construção de duas fábricas, com início de operação neste ano, para produzir 5 kg/h de hidrogênio e, posteriormente, ampliação da produção em dez vezes. Uma estação de abastecimento veicular será instalada no campus da USP para mover um ônibus e também um automóvel da montadora japonesa, o Mirai, primeiro carro de série movido a célula combustível.
“Nosso objetivo é demonstrar que o etanol pode ser um vetor na produção de hidrogênio renovável, aproveitando a logística já existente da indústria de etanol, além de ser uma solução eficiente, sustentável e facilmente replicável globalmente”, explica Mateus Lopes, diretor de transição energética e investimentos da Raízen. O projeto de pesquisa e desenvolvimento pretende calcular a pegada de carbono do ciclo “campo-roda”, isto é, mensurar as emissões de CO2 na atmosfera, desde o cultivo da cana até o consumo do hidrogênio pela célula combustível.
Em 6 de abril, a Engie Brasil Energia firmou protocolo de intenções com a Invest Paraná para desenvolver projetos de produção de hidrogênio verde em grande escala no Estado. A empresa também tem parcerias no Ceará para desenvolver estudos e projetos de plantas de H2V, com capacidade de até 150 MW numa primeira etapa e potencial de expansão até o fim da década.