O Estado de São Paulo
Vinte anos após o lançamento do programa do biodiesel no País, o combustível volta aos holofotes das iniciativas pública e privada, inclusive de grandes grupos empresariais. O movimento se deve a uma conjunção peculiar de fatores políticos, econômicos e ambientais, que vêm impulsionando investimentos bilionários ligados à transição energética.
Encabeçam essa lista a consolidação do agronegócio como uma das bancadas mais amplas e poderosas do Congresso, o que ajuda a garantir mudanças regulatórias e legislativas favoráveis à cadeia, além do interesse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no tema.
O petista assinou a primeira medida provisória sobre o óleo vegetal, em 2004, prometendo uma revolução nas regiões mais pobres do País. O objetivo era privilegiar a produção de biodiesel a partir de mamona e palma, nas regiões Norte e Nordeste.
Duas décadas depois, porém, o cenário é distinto do que foi traçado na ocasião: o óleo de soja responde por mais de 70% da matéria-prima do combustível, com a produção concentrada nos Estados de Mato Grosso e Rio Grande do Sul.
Já o óleo de palma, feito no Pará, é responsável por menos de 1%, segundo dados da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). A mamona, por sua vez, desapareceu da lista de insumos.
Não à toa, o biodiesel se tornou uma das poucas áreas de convergência entre as prioridades do governo Lula 3 e os interesses de grandes produtores rurais – um dos segmentos mais refratários à atual gestão.
O setor alega, porém, que uma fatia significativa das matérias-primas é adquirida de pequenos agricultores, por meio do Selo Biocombustível Social. O programa existe desde 2004 e concede incentivos fiscais às empresas que compram insumos da agricultura familiar. Neste ano, as metas foram redesenhadas com foco nos agricultores do Norte, Nordeste e semiárido.
“Algo como R$ 9 bilhões são anualmente adquiridos pela indústria de biodiesel desses pequenos agricultores”, afirma Sérgio Beltrão, diretor-executivo da União Brasileira do Biodiesel e Bioquerosene (Ubrabio). Ele também destaca o desenvolvimento do interior do País devido ao “boom” dessa cadeia.
Além de Lula, o setor conta com o entusiasmo do ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, que ficou ao lado do agronegócio em disputas com a Petrobras. A estatal tem no diesel o seu principal produto e atuou para limitar o avanço da mistura obrigatória do biodiesel, sem sucesso.
Em outra frente, a petroleira desenvolveu um diesel coprocessado com óleos vegetais com o objetivo de emplacá-lo na classificação de biocombustível. A investida, porém, bateu de frente com os interesses do agronegócio e, por enquanto, não avançou.
Na última decisão do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) sobre o biodiesel, o órgão aprovou a antecipação do cronograma da mistura. Com isso, o diesel passou a chegar aos postos com 14% de óleo renovável – porcentual que avançará a 15% em 2025.
“Há uma pressão da demanda (por biodiesel) vinda de dois lados: do aumento da mistura e do crescimento nas venda de diesel nos postos, que é fruto do avanço do PIB e das exportações, que puxa o frete”, afirma o analista de inteligência de mercado da consultoria StoneX, Bruno Cordeiro.
Segundo as projeções da StoneX, o consumo nacional de biodiesel vai saltar de 7,4 bilhões de litros em 2023 para 9 bilhões neste ano – um avanço de 21,6%.
As decisões recentes do CNPE contrastam com a política adotada durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, que reduziu o mandato do biodiesel de 13% para 10% com o objetivo de conter os preços nas bombas e amenizar o descontentamento dos caminhoneiros.
As idas e vindas geraram reclamações de insegurança jurídica por parte do setor, que passou a amargar uma alta ociosidade nas usinas, hoje ao redor de 40%.
‘Combustível do futuro’
Com a retomada do crescimento da mistura, a articulação do segmento agora está voltada ao projeto de lei chamado de Combustível do Futuro, que tem o objetivo de descarbonizar a matriz energética do transporte por meio de biocombustíveis.
Na proposta original do governo, o biodiesel não havia sido contemplado, mas a bancada ruralista manobrou para apensar o projeto do Executivo a um texto de autoria do deputado Alceu Moreira (MDB-RS), presidente da Frente Parlamentar Mista do Biodiesel.
A versão atual, que será analisada pelo Senado nesta semana, prevê que a mistura obrigatória alcance 20% em 2030, podendo chegar a 25% após 2031, a depender de análise do CNPE.
Donizete Tokarski, presidente da Ubrabio, diz que apenas a aprovação do projeto não é suficiente, que as metas precisam ser efetivamente cumpridas. “O setor precisa de segurança jurídica e previsibilidade.” O segmento tentou garantir ajustes automáticos da mistura, para reduzir a dependência em relação ao governo, mas não conseguiu emplacar a mudança.
Biodiesel surfa na onda ‘verde’; matéria-prima é desafio
A esses fatores políticos e econômicos se soma, ainda, a onda global de investimentos e exigências “verdes”, que visam à redução da emissão de gases do efeito estufa.
A agenda foi encampada pelo Palácio do Planalto, mas também pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), uma vez que o alagoano está de olho na construção de legados para garantir a eleição do seu sucessor no comando da Casa. Como consequência, agilizou a tramitação das propostas relacionadas ao tema.
“A transição energética é inexorável e nenhum outro país do mundo tem as condições que o Brasil tem, seja na parte agrícola, seja na tecnológica e até no hábito de utilização criado pelo próprio etanol, que foi instituído na década de 70″, afirma Beltrão, da Ubrabio.
Um dos desafios para o aumento da produção, porém, é a diversificação de matéria-prima. “Um ponto que vai ser discutido nos próximos anos é como você vai garantir que o mercado de biodiesel tenha as matérias-primas necessárias para suprir a demanda, diante da chegada de outros biocombustíveis que também fazem uso do óleo de soja”, afirma Cordeiro, da StoneX.
Ele cita, por exemplo, a produção do HVO, também chamado de diesel verde, e do Combustível Sustentável de Aviação (SAF), cujas regulamentações estão sendo definidas no projeto de lei do combustível do futuro.
Além da capacidade de atender aos mandatos, há preocupações em relação a fraudes. “O que você vê de diesel sendo vendido como biodiesel é impressionante. O biodiesel é mais caro. Portanto, se eu vendo um como se fosse o outro, eu tenho um lucro maior do que quem segue as regras. Isso é concorrência desleal”, afirma o presidente do Instituto Combustível Legal (ICL), Emerson Kapaz.
O ICL afirma que encontrou cerca de 170 milhões de litros de diesel com biodiesel fora do padrão em 2023, o que teria impactado 850 mil veículos leves e pesados. Segundo o instituto, Alagoas, Bahia, São Paulo, Minas Gerais e Amapá lideram o ranking da mistura fora das regras.
A Ubrabio afirma, porém, que o índice de não conformidade dos combustíveis líquidos no Brasil é inferior a 4%, dentro da média mundial. E que, desse índice de 4%, apenas a metade estaria associada à falta da mistura do biodiesel. O setor trabalha em parceria com as distribuidoras e a ANP para desenvolver testes rápidos, nos postos, para que haja maior controle da adição.
O segmento também refuta críticas de que a produção de biodiesel, com base em óleos vegetais e animais, esteja competindo com a produção de alimentos. “Entendemos que isso é um sofisma, porque se trata de uma realidade europeia válida apenas para alguns biocombustíveis”, afirma Beltrão, da Ubrabio.
Ele afirma que, no caso do biodiesel brasileiro, o grão da soja, quando processado, gera 80% de farelo, que é direcionado às rações animais, e 20% de óleo. “Então, ao aumentar a demanda por óleo de soja, você está quadruplicando a oferta de farelo. Portanto, o biodiesel estimula a oferta de alimentos.”