Avanço das energias renováveis é fonte de conflitos socioambientais no NE

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Diário do Comércio

A corrida pelas fontes renováveis de energia no Brasil tem gerado uma série de focos de conflitos socioambientais, principalmente na região Nordeste —cenário que, para especialistas, demanda maior planejamento e rigor no licenciamento ambiental.
Principalmente diante dos alertas cada vez mais intensos sobre a emergência climática, que devem acelerar a implantação de projetos em todo o mundo, segundo recomenda o relatório final da COP 28, realizada este mês nos Emirados Árabes Unidos.
Os problemas apontados por promotores e associações vão desde conflitos com comunidades a riscos de danos ambientais, como a como a ameaça a espécies endêmicas e o desmatamento da caatinga, bioma privilegiado por fortes ventos e irradiação solar.
O setor reconhece erros em projetos antigos, mas diz que vem reforçando recomendações para o uso de melhores práticas tanto no relacionamento com comunidades locais quanto na proteção do meio ambiente.
Um dos países com grande potencial para liderar a transição energética, o Brasil dobrou sua capacidade de produção de energia eólica e aumentou em seis vezes a capacidade de geração solar nos últimos cinco anos.
E o ritmo deve se manter intenso nos próximos anos: apenas em 2023, a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) já concedeu outorga a 1.614 novos parques solares e 317 eólicos. Com boa incidência de luz e sol, a região Nordeste e o norte de Minas Gerais concentram a maior parte dos projetos.
“A vinda dos empreendimentos de energias renováveis é importante, mas é preciso lembrar saber que existe vida, existem pessoas, existe fauna nos territórios em que elas chegam”, diz a promotora Luciana Khouri, do Ministério Público da Bahia.
“Não é porque é o melhor local para a geração de vento que tem que colocar [o parque gerador] ali. A gente tem tido muito problema com a falta de cuidado com as comunidades tradicionais e com a biodiversidade local.”
Khouri é parte de um grupo da Promotoria baiana que atua na fiscalização desses projetos. Em abril, eles obtiveram em conjunto com o Ministério Público Federal liminar contra a instalação de um parque eólico em Canudos, no norte do estado, alegando supostas falhas no licenciamento ambiental.
No pedido de liminar, que foi derrubada em segunda instância, eles questionam a falta de estudo de impacto ambiental, exigido quando há espécies endêmicas, e de consulta prévia às comunidades, exigido quando há comunidades tradicionais.
A instalação do parque de Canudos é um dos conflitos listados pelo Mapa de Injustiça Social e Saúde da Fiocruz (Fundação Osvaldo Cruz), que vê também impactos sobre a atividade de pesca no Rio Grande do Norte e luta contra especulação imobiliária em Caetités (BA).
Em Caetés (PE), estudo da UFPE (Universidade de Pernambuco) constatou que na comunidade de Sobradinho, onde a distância média das casas para os aerogeradores é de 411 metros, 70% da população usa medicação contínua e 64% tomam remédios para dormir.
“Minha esposa ficou agressiva, não se alimentava e não dormia. Aí eu não tive escolha: tive que abandonar a propriedade”, contou o agricultor Simão Salgado, 75, e audiência sobre o tema na Assembleia Legislativa de Pernambuco no início de dezembro.
Seu vizinho arrendou o terreno para a instalação de nove aerogeradores, um deles a 200 metros de sua casa. “Se nós tivéssemos assinado o contrato [de arrendamento] e viéssemos recebendo algum recurso, não poderia estar reclamando, mas fomos apenas afetados com o empreendimento.”
Em outra frente, o Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) avalia que mesmo quem arrendou terreno pode enfrentar problemas, apesar da receita que varia entre 1% e 1,5% do valor de produção de cada aerogerador.
Análise de 50 contratos apontou assimetrias que favorecem as empresas, como renovações automáticas de prazo e possibilidade de rompimento unilateral apenas pelo empreendedor. Já há ações judiciais questionando os termos em diversos estados, diz o advogado Claudionor Vital.
Ele afirma que os proprietários têm pouco conhecimento jurídico e são proibidos de falar dos contratos por cláusulas de confidencialidade. Assinam embalados pelo “canto da sereia”: “são propriedades com baixa produtividade e os contratos geram renda; é o argumento das empresas”.
A consulta individual aos moradores próximos dos empreendimentos é questionada pela promotora Khouri. “É preciso discutir como coletivo porque [as comunidades] têm uma forma de viver em coletividade. Chegando com proposta para uma ou duas pessoas, temos reflexos sérios.”
Em Canudos, a instalação do parque eólico dividiu a comunidade Bom Jardim, uma área rural remota, distante cerca de 60 quilômetros da rodovia mais próxima, em estradas de terra e areia cercadas por vegetação cerrada de caatinga.
“Se não fosse isso [o projeto], a gente já tinha morrido”, defende o produtor rural José Dantas de Oliveira, 55, apontando para a vegetação e o gado castigados pela seca. “A gente paga R$ 150 para trazer água e não dura três dias. Agora a empresa vem e traz para a gente.”
Os críticos do projeto preferem não terem seus nomes citados por medo de represálias. São, em geral, de uma comunidade de fundo e fecho de pasto da região, tipo de comunidade tradicional da caatinga que cria animais soltos em terras livres, o que facilita o acesso a água e alimentação.
Alegam que a supressão de vegetação e a abertura de estradas prejudicam a criação de gado e caprinos e expulsam onças para fora da mata, pondo em risco os animais. Temem ainda que a situação piore quando os aerogeradores se aproximarem de suas residências, gerando barulho e problemas de saúde.
Em 2022, a plataforma MapBiomas identificou pela primeira vez desmatamento da caatinga por projetos desse tipo. Foram contabilizados 23 alertas de desmatamento para a construção de usinas fotovoltaicas, com área de 3.203,48 hectares. Para usinas eólicas, foram 23 alertas, totalizando 1.087,80 hectares.
Juntas, formam uma área equivalente à administrada pela subprefeitura da Lapa, em São Paulo, que inclui Lapa, Barra Funda, Jaguara, Jaguaré, Perdizes e Vila Leopoldina. Washington Rocha, coordenador da equipe Caatinga do MapBiomas, diz que as fontes renováveis tem dois distintos padrões de ameaças.
“A energia eólica ameaça principalmente os remanescentes florestais da caatinga por conta de serem instalados em altitude. A solar ameaça de forma mais ampla e com mais extensão, porque ocupam áreas muito extensas para espalhar as placas.”
Em Canudos, além do parque eólico com previsão para 81 aerogeradores torres de geração de energia, dos quais 28 já estão instalados, a Voltalia prevê também um parque solar.
Ministério Público e especialistas temem os efeitos dos empreendimentos sobre a arara-azul-de-Lear, que esteve praticamente extinta, com uma população de menos de 100 indivíduos nos anos 1970. Hoje, após décadas de programas de conservação, são mais de 2.000.
“O comportamento delas é curioso, saem dos dormitórios e voam longe para se alimentar, logo cedo no início do dia”, diz a promotora Luciana Khouri. “Esses comportamentos precisavam ser estudados para o licenciamento.”
A francesa Voltalia, operadora do parque, diz que as turbinas vêm operando desde novembro “sem qualquer registro de incidente”. “Foram investidos R$ 800 milhões no projeto, incluindo a realização de todos os estudos necessários e a implementação das medidas de segurança recomendadas.”
A empresa diz ainda que criou um programa de conservação da arara-azul-de-Lear e tem promovido ações, como o replantio do liculizeiro, principal alimento da espécie, que também estava ameaçado de extinção devido a ações de desmatamento.
“Além disso, adotou medidas de proteção à espécie, como a instalação de um sistema de alerta inédito no Brasil, que paralisa as turbinas em caso de aproximação de aves”, concluiu, em nota.
Cartilhas de boas práticas evitarão novos conflitos, diz setor
A presidente da Abeeólica (Associação Brasileira das Empresas de Energia Eólica), Elbia Gannoun, diz que o setor começou a ter conhecimento dos conflitos em 2020 e vem atuando para resolvê-los e evitar sua repetição no futuro.
Em Caetés, por exemplo, os empreendedores negociam a compra das propriedades afetadas pelo ruído dos aerogeradores. Os casos remanescentes são de moradores que ainda não fecharam acordos.
Com relação aos contratos com assimetrias, diz que, em geral, foram assinados por agentes que identificam áreas de elevado potencial para vender projetos a empresas de energia. “É uma questão mais complexa, mas as têm que resolver.”
A associação vai lançar no início de 2024 um guia de boas práticas para tentar melhorar o desenvolvimento dos projetos e sua relação com as comunidades, sugerindo inclusive modelos de contratos de arrendamento.
“A energia eólica, do ponto de vista ambiental, tem impacto baixíssimo. Do ponto de vista social, se não está tendo, tem que ter impacto baixíssimo”, diz ela.
A Absolar afirma em nota que a “ampla maioria destes empreendimentos é construída em locais com menor densidade demográfica e em terrenos já antropizados e de baixa produtividade, que normalmente não seriam aproveitados para outras atividades”.
A implantação dos projetos, continua, “atende a rigorosos requisitos legais, regulatórios e ambientais, inclusive quanto ao seu licenciamento, mitigação e compensação de eventuais impactos ao entorno” e é acompanhada de interações com comunidades locais.
Os padrões ESG, conclui, determinam que tratativas locais sejam justas e transparentes, em especial com populações mais vulneráveis.
O tema dos conflitos é hoje debatido pela área social do governo em Brasília. O MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar) diz que vem recebendo denúncias de comunidades quilombolas e tradicionais sobre a instalação de parques.
“A gente tem dialogado nesse sentido com lideranças comunitárias e tentamos abrir diálogo com empresas sobre esse direito “, diz a chefe de divisão da Secretaria de Territórios e Sistemas Produtivos Quilombolas e Povos e Comunidades Tradicionais do ministério, Andressa Lewandowski.
O advogado Claudionor Vital destaca que outros tipos de recursos naturais, como minério, petróleo ou potencial hidrelétrico são considerados bens da União e, por isso, os governos recebem compensações por sua exploração, que podem ser revertida em benefício das comunidades locais.
Já o sol e o vento, que apenas mais recentemente passaram a ter aproveitamento econômico, não se enquadram legalmente nessa definição. “O que está havendo nesse processo é apropriação privada dos recursos naturais sem qualquer benefício para as comunidades”, afirma.
Com a necessidade de encontrar substitutos ao petróleo, destaca ele, empresas passarão a investir na produção de hidrogênio verde com uso de energias renováveis, o que vai ampliar a demanda por novos projetos.
“Temos que pensar na quantidade de energia que o país precisa”, afirma. “Muitos desses parques estão sendo planejados para exportar energia de alguma forma.”

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