Valor
Dois anos depois do lançamento do programa Novo Mercado de Gás, em julho de 2019, o Brasil conseguiu avançar com o novo marco legal para o setor, mas a abertura do mercado de gás natural ainda engatinha. Historicamente dominante, a Petrobras se mantém praticamente como única grande fornecedora das distribuidoras, enquanto o mercado livre ainda não emplacou. Com barreiras de acesso presentes na indústria, o choque de preços parece uma realidade distante de ser alcançada no atual governo.
Ao lançar o programa, o ministro da Economia, Paulo Guedes, prometeu que os preços poderiam cair 40% em dois anos. Em 2020, influenciado por um efeito conjuntural (a desvalorização do petróleo, ao qual o gás está indexado) o preço do combustível vendido às distribuidoras chegou, de fato, a cair 35% no acumulado do ano. Sem uma base estrutural, porém, a queda foi revertida em 2021, à medida que o petróleo se recupera. Hoje, o preço do gás é mais caro, no Brasil, que aquele de antes do Novo Mercado de Gás.
É claro que a pandemia travou a agenda legislativa e atrasou a Nova Lei do Gás. Independente disso, as chances de um choque de preços de curto prazo eram improváveis, num processo de abertura tão complexo – que, na Europa, por exemplo, levou mais de dez anos.
Também não quer dizer que não houve avanços concretos: o novo marco legal foi aprovado neste ano; novos pequenos fornecedores, como Alvopetro e Origem Energia, entraram no mercado baiano; a Shell venceu concorrência para suprir a Copergás (PE) a partir de 2022; a Unigel se tornou a primeira indústria a fechar contrato no mercado livre (na modalidade interruptível); e Petrobras vendeu as transportadoras TAG e NTS, além de se preparar para sair de vez do transporte e distribuição.
Mas por que, afinal, o setor ainda se mantém concentrado e o mercado livre não deslancha? Para o presidente da Gas Energy, Rivaldo Moreira Neto, é inegável que o ambiente de negócios evoluiu. Os agentes, segundo ele, estão mobilizados, na tentativa de destravar contratos, mas há um descasamento entres os diversos elos envolvidos. O consultor cita a falta de previsibilidade sobre o calendário de chamadas públicas para contratação das capacidades dos gasodutos e como é difícil para as empresas conciliar isso com as regulações estaduais – que exigem que a indústria oficialize a migração para o ambiente livre com meses de antecedência. “Os prazos de regulações estaduais não conversam com as incertezas que o acesso ao transporte ainda impõe”, opinou.
Moreira Neto também menciona a ausência de definição das metodologias tarifárias dos novos contratos de transporte. Em meio a essas dificuldades, a corrida pelo mercado livre segue. Desde julho de 2019, o número de comercializadoras autorizadas pela Agência Nacional de Petróleo (ANP) cresceu 68%, para 138 agentes. O gerente de gás da Abrace (grandes consumidores industriais de energia), Adrianno Lorenzon, diz, no entanto, que é difícil para o consumidor se tornar livre sem clareza sobre a real capacidade disponível nos gasodutos e sobre as tarifas.
O presidente da transportadora ATGás, Rogério Manso, por sua vez, defende que há complexidades técnicas no dimensionamento da capacidade disponível, mas que os trabalhos estão em evolução. Além disso, os transportadores tem dialogado com o mercado a fim de entender as demandas. “As chamadas públicas não existem por si só, mas para atender a uma realidade de demanda potencial”, disse, ao citar o exemplo do processo aberto pela TBG, que esbarrou na falta de ofertantes, além da Petrobras, devido ao insucesso de agentes privados em contratar a molécula de gás na Bolívia.
Lorenzon, da Abrace, disse não acreditar num choque de preços no atual governo. “A redução vem a partir do aumento da oferta e só vemos isso acontecendo mais a partir de 2024”, comentou.
Ele cita ainda, como entraves, as dificuldades reportadas por produtores no acesso às unidades de processamento da Petrobras. Segundo um executivo de uma pequena petroleira, a estatal vem impondo condições contratuais e preços desproporcionais.
Já a Petrobras esclareceu que o acesso negociado às infraestruturas está avançando, que segue em tratativas com os interessados e que fechou, por exemplo, acordo com a Shell, Repsol Sinopec e Petrogal para compartilhamento das infraestruturas de escoamento e processamento do pré-sal. A estatal destacou, ainda, que está comprometida com “um mercado de gás aberto, competitivo e sustentável” e que antecipou alguns dos compromissos com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) – como a venda da TAG e NTS. A petroleira também alega que reduziu a compra de gás da Bolívia, abrindo espaço para concorrentes; e que incluiu, nos contratos de compra de gás de terceiros, cláusulas de saída unilateral que permitem aos produtores, a qualquer momento, comercializar o gás próprio.
As barreiras de entrada do mercado brasileiro ficaram evidentes, recentemente, na licitação para arrendamento do terminal de regaseificação da Petrobras na Bahia. Apenas a Excelerate apresentou oferta, com uma condicionante não prevista no edital. A Petrobras desclassificou a proposta, mas abriu um novo prazo, para que a empresa faça uma nova oferta.
A abertura do mercado vive uma nova janela de oportunidades, em meio às chamadas públicas abertas pelas distribuidoras do Nordeste e Centro-Sul para contratar gás. O diretor de Estratégia e Mercado da Abegás (associação das distribuidoras), Marcelo Mendonça, defende, contudo, que o setor ainda convive com “problemas antigos sem soluções rápidas” e cita que o choque de preços só será viável quando houver um aumento expressivo dos ofertantes. “Só monetizaremos o gás [do pré-sal] se criarmos demanda”, disse.
Já a diretora de gás do Instituto Brasileiro de Petróleo (IBP), Sylvie D’Apote, acredita que a consolidação da abertura dependerá do desenvolvimento da indústria de gás como um todo, em seus múltiplos elos. “Prometer um choque de preços [de curto prazo], lá atrás, foi um pouco atrevido. Vai ser preciso um incremento gradual da concorrência na oferta, no número de participantes do mercado como um todo. É um processo”, afirmou.
Sobre os riscos de um retrocesso na abertura, numa eventual troca de governo a partir de 2022, a sócia do BMA Advogados, Ana Cândida, alega que a Nova Lei do Gás trouxe uma segurança jurídica importante. “Claro, um nível de influência política sempre há no planejamento energético, na priorização de projetos e processos, mas esse nível diminui com o marco legal.”