Professor aponta as falhas no sistema tributário que afetam o setor de combustíveis e o bolso do consumidor

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Instituto Combustível Legal

A complexidade do sistema tributário afeta não apenas o mercado, mas o bolso do consumidor, que paga caro na hora de abastecer o veículo. Para Fernando Scaff, tributarista e professor titular de Direito Financeiro da USP, a principal falha é colocar os combustíveis dentro do sistema de tributação do consumo, em especial pelo ICMS, pois fraciona as incidências por todos os estados da Federação, além de transformar essa arrecadação em “monopólio fiscal”, gerando arrecadação para os estados e dificultando a redução de alíquotas. Confira a entrevista completa:
Instituto Combustível Legal: Professor, de zero a dez, que nota o senhor daria ao sistema tributário referente ao setor de combustíveis no Brasil?
Fernando Scaff: Cinco. Sinto saudade do sistema anterior, de Impostos Únicos, que existia antes de 1988, que estabelecia tributação diferenciada para preços sensíveis da economia. Porém, pouco há para ser modificado por dentro do atual sistema, que colocou os combustíveis dentro do sistema de tributação pelo ICMS, PIS, Cofins e Cide. A singela redução de suas alíquotas não resolve o problema.
Instituto Combustível Legal: Como funcionava esse sistema anterior?
Fernando Scaff: Relembrando, a União cobrava um único tributo, monofásico, sobre alguns preços sensíveis para a economia. Incidia sobre lubrificantes (IUL), sobre combustíveis (IUC), sobre minerais (IUM), sobre energia elétrica (IUEE) e por aí assim. Era arrecadado pela União e transferido aos estados e municípios, que não podiam criar nenhuma tributação sobre essas atividades.
Na Constituição de 1988, esse sistema foi alterado, passando a ser possível a tributação pelos estados (ICMS), que criou uma enorme confusão nesses setores econômicos, permitindo também que a União tributasse essas mesmas atividades (PIS e Cofins, e, posteriormente CIDE).
Ou seja, multiplicaram-se as incidências, criando esse pandemônio tributário pelos quais passam as empresas que atuam nessas atividades. O sistema anterior, independente das alíquotas ou dos preços praticados, era muito mais simples e permitia maior segurança jurídica.
Os estados e municípios recebiam os valores de forma transferida pela União, mas não tributação diretamente, pela simples razão de que tais bens são muito sensíveis para a economia nacional.
Instituto Combustível Legal: O senhor pode elencar as principais falhas do nosso sistema tributário para esse setor?
Fernando Scaff: A principal falha existe em colocar os combustíveis dentro do sistema de tributação do consumo, em especial pelo ICMS, pois isso fraciona as incidências por todos os estados da Federação. Além disso, transforma esta arrecadação em um verdadeiro “monopólio fiscal”, pois gera enorme arrecadação para os estados sobre um bem de primeira necessidade, o que dificulta a redução das alíquotas.
Instituto Combustível Legal: Pode citar graves distorções que o sistema de isenções e benefícios fiscais provocam nesse mercado? O consumidor final, na ponta, também é afetado?
Fernando Scaff: Esta é uma pergunta econômica complexa, pois nada garante que uma isenção, ou benefício fiscal do meio da cadeia econômica, gerará redução do preço ao consumidor final. Existem vários estudos econômicos acerca do tema. O que vai gerar redução do preço é a política econômica para este preço sensível à economia.
Instituto Combustível Legal: As distorções acabam por afetar negativamente a arrecadação dos estados?
Fernando Scaff: Sem dúvida, pois, para os estados, esta arrecadação é vultosa e não os permite reduzir substancialmente. Ademais, são tantos os estados impondo a tributação pelo ICMS, que obter consenso para uma redução generalizada é dificílimo.
Instituto Combustível Legal: Muito se fala que a implantação de um imposto único (monofasia) sobre os combustíveis resolveria o problema. O senhor concorda?
Fernando Scaff: Gosto da ideia, pois retoma a fórmula pré-88, dos impostos únicos. Precisaria ser um imposto único para todos os níveis federativos, e não apenas para um ente da Federação.
Instituto Combustível Legal: E por que os estados resistem tão fortemente a essa proposta?
Fernando Scaff: Pelo óbvio motivo que se tornaram dependentes desta arrecadação. Trata-se de outro erro original da Constituição de 1988, no âmbito tributário, tal como ocorreu na possibilidade de tributação das exportações, o que foi parcialmente corrigido pela Lei Kandir.
Obs. A Lei Kandir isenta do tributo ICMS os produtos e serviços destinados à exportação. Ela entrou em vigor em 01 de novembro de 1996.
Instituto Combustível Legal: É correto colocar a culpa do preço final dos combustíveis nas tributações estaduais? A culpa é de quem?
Fernando Scaff: São vários os responsáveis ao longo do tempo. O problema atual está na fórmula adotada para o preço dos combustíveis, diretamente vinculado ao câmbio, com transferência imediata dessa variação cambial ao consumidor. Há uma disputa entre acionistas da Petrobras, que se beneficiam com esta política, versus os consumidores, que pagam este preço alto. Observe-se que o principal acionista da Petrobras é a União, ou seja, o Governo Federal.
Vale frisar que as alíquotas do ICMS, que são altas, não variaram recentemente. Por serem percentagens, incidem sobre o preço, que disparou.
Se, em vez de serem alíquotas, fossem valores fixos, nada garante que a carga tributária reduzisse, pois os valores fixos de ICMS poderiam ser altos, e quando os preços baixassem, nada garantiria que o valor fosse reduzido. O uso de alíquotas é o mais adequado – porém, deveriam ser mais baixas, se fosse possível.
A principal falha existe em colocar os combustíveis dentro do sistema de tributação do consumo, em especial pelo ICMS, pois isso fraciona as incidências por todos os estados da Federação
Instituto Combustível Legal: Recentemente, o senhor escreveu um artigo criticando a postura da presidência da República em relação ao projeto de lei de conversão da MP 1.034/21. O que motivou suas críticas? Aprovou, vetou, tudo junto?
Fernando Scaff: Foi uma bagunça, tudo feito de modo bastante atrapalhado.
Existiam artigos na MP 1.034 que tratavam da tributação da importação de combustíveis para consumo na Zona Franca de Manaus. O foco do problema está na constatação de que existem empresas que importam combustíveis para aquele local em volume muito superior ao que lá se consome, aproveitando um regime especial de não tributação.
Um exemplo pode ilustrar o problema: é como se o consumo de combustíveis na área da ZFM fosse de 1.000 litros/mês, porém, algumas empresas lá situadas importam 5.000 litros/mês. Ocorre que o regime especial é adotado para consumo na ZFM.
O pressuposto é que haja quebra de trânsito, pois o que deveria ser importado para ser consumido naquela região está sendo consumido em outras não abrangidas pelo benefício fiscal. Em síntese: há suspeita de sonegação fiscal – e isso impacta fortemente a concorrência.
Instituto Combustível Legal: O senhor poderia especificar a origem deste problema?
Fernando Scaff: A trapalhada ocorreu neste ponto: o projeto de lei de conversão da MP 1.034/21 foi sancionado pelo Presidente da República com vetos nos artigos 2º, 5º e 6º, sobre matérias diversas que não dizem respeito à tributação dos combustíveis. Porém, poucas horas depois, uma edição extra do Diário Oficial circulou acrescendo mais um veto, ao art. 8º, que tratava especificamente da tributação do setor de combustíveis na ZFM.
Ou seja, além de manter aberta a porta para fraudes na tributação dos combustíveis, com fortes impactos concorrenciais, adotou um procedimento juridicamente contestável, pois o processo legislativo se encerra com a publicação da norma no Diário Oficial, e eventuais republicações são cabíveis apenas para corrigir erros, e não por esquecimento ou pressão de última hora – tal como ocorreu.
Tudo isso aponta para uma inadequada e indevida improvisação na economia, ampliando a insegurança jurídica e econômica.
O problema atual está na fórmula adotada para o preço dos combustíveis, diretamente vinculado ao câmbio, com transferência imediata dessa variação cambial ao consumidor
Instituto Combustível Legal: O senhor acredita que, havendo uma reforma tributária ainda este ano, o setor de combustíveis pode ser contemplado?
Fernando Scaff: Espero que sim, porém, não se pode esquecer que sempre pode piorar. Os projetos de reforma tributária atualmente em trâmite no Congresso referentes à tributação do consumo no Brasil apontam para uma piora do sistema. Às vezes, achamos que estamos no fundo do poço, e descobrimos que há um alçapão que pode nos levar a outro nível inferior, em vez de uma escada para dele sair.
Instituto Combustível Legal: Existem algumas propostas de reforma tributária, qual delas poderia ser melhor para o mercado de combustíveis?
Fernando Scaff: Até aqui, nenhuma. Até que surja uma ideia melhor, deveríamos pensar em retornar ao sistema pré-88, de Impostos Únicos.
Instituto Combustível Legal: A preocupação dos consumidores – legítima – é saber se o preço dos combustíveis vai diminuir. Com a reforma tributária, pode haver queda nos preços?
Fernando Scaff: Sim, caso venha a ser melhor desenhado o sistema tributário, o que não está presente nos projetos em curso.

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