Opinião: Brasil flerta com apocalipse do livre mercado

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Por Arthur Villamil Martins*

O Ministério da Justiça publicou hoje, dia 1º de junho de 2018, em edição extra do Diário Oficial da União, a Portaria 735, que determina aos revendedores de combustíveis o imediato repasse da redução do valor do óleo diesel nas refinarias da Petrobras ao consumidor final.
Editada em meio a crise de abastecimento causada pelos bloqueios de estradas organizados por caminhoneiros e empresas de transportes, a Portaria é uma tentativa assegurar, na marra, o cumprimento das promessas feitas pelo Governo Federal ao setor de transportes rodoviários. Ocorre que tal Portaria representa evidente retrocesso do sistema de livre mercado no Brasil e custará muito caro à sociedade brasileira.
O livre mercado de combustíveis foi instituído pela Portaria Interministerial 295/1997, em substituição ao decadente sistema de tabelamento de preços operado pelo Governo Federal durante os anos oitenta e noventa e que tinha o intuito de controlar a inflação. O tabelamento de preços, como a História recente provou, jamais foi eficaz para conter a inflação, já que uma norma jurídica não tem o condão de revogar leis econômicas. É dizer, não é possível afastar a lógica de mercado pela penada do legislador (ou do Executivo, como ocorreu hoje).
A intervenção estatal nos preços das empresas privadas é medida extrema, pois além de potencialmente violar os direitos fundamentais econômicos do empreendedor pode também acabar por desestimular a atividade econômica caso o preço fixado pelo Estado não seja atraente para a iniciativa privada. Quando isso ocorre, o que se vê é um aumento drástico da escassez do produto, como o que ocorreu nos anos noventa com o gado nas fazendas que não eram mais vendidos aos frigoríficos porque os preços autorizados pelo Governo eram inviáveis para os criadores. Desse triste momento da economia brasileira ficaram as recordações de supermercados desabastecidos, prateleiras vazias e “fiscais do Sarney” denunciando empresários que acabavam sendo presos por supostamente praticarem “crimes contra e economia popular”. Nada disso funcionou, por óbvio. Serviu apenas para agravar ainda mais o sofrimento da nação.
De volta ao presente, mais de vinte anos depois de extinta a intervenção direta nos preços dos combustíveis, o cenário atual é lamentável não apenas porque a Portaria 735 prejudicará mais de quarenta mil postos de combustíveis no Brasil, mas também e principalmente, porque sinaliza para todo o mercado que o Governo voltou a interferir diretamente nos preços das empresas privadas. Essa sinalização de que o Estado pode voltar a regular preços a qualquer momento, sem sequer passar pelo crivo do Poder Legislativo (já que a intervenção veio por meio de Portaria) traz uma perspectiva muito sombria para o empresário e para o investidor. Voltamos a era da instabilidade econômica e da insegurança jurídica. O risco de empreender no Brasil aumentou consideravelmente após a edição extra do Diário Oficial da União ao final da tarde de hoje.
Nessa nova conjuntura, o que mais assusta é que o Governo está interferindo em preços de modo não sistemático, ou seja, o Estado não está atuando diretamente na economia por meio de uma racionalidade planejadora. Pelo contrário, a intervenção está sendo executada ao sabor das exigências de certos grupos de interesse, no caso, o do setor de transportes. Ao interferir na economia para simplesmente satisfazer pressões de certos segmentos econômicos, o Estado perde de vista a racionalidade planejadora que é imperativo para a sua atuação no mercado, conforme determina expressamente o artigo 174 da Constituição Federal.
A intervenção realizada hoje é muito mais perigosa do que aquela realizada nos anos noventa. Naquele tempo, a intervenção nos preços era geral e sistemática e tinha por objetivo o controle da inflação, ou seja, tinha por finalidade a execução de uma política macroeconômica. A intervenção realizada pelo Governo Federal atualmente, não visa o controle da inflação como elemento de execução de política macroeconômica. Pelo contrário, o objetivo é microeconômico, isto é, visa assegurar redução dos preços de óleo diesel para o segmento do transporte de cargas.
A atipicidade (e a falta de razoabilidade econômica) da atual intervenção no domínio econômico, que está sendo utilizada única e exclusivamente para beneficiar um segmento de mercado (os transportadores) fica ainda mais nítida quando se analisa o teor da Medida Provisória 832, de 27 de maio de 2018, que institui a Política de Preços Mínimos do Transporte Rodoviário de Cargas. Neste caso, ironicamente, em vez de diminuir preços – o que seria de se esperar de uma política macroeconômica de controle inflacionário – o Estado estabeleceu um piso mínio para o preço do frete, ou seja, está assegurando que o preço não cairá abaixo do tabelamento mínimo. A preocupação, então, não é com o controle da inflação, mas sim com a satisfação dos interesses de uma classe econômica específica.
A Medida Provisória 832 consagrou um verdadeiro cartel de fretes no Brasil, formalizado sob as bênçãos do Poder Executivo. É sabido, há muito tempo, que tabelas de preços para assegurar remuneração mínima a determinadas categorias econômicas constitui infração antitruste nos termos da Lei 12.529/2011, mais conhecida como Lei de Defesa da Concorrência. Nesse ponto, note-se que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Cade condenou reiteradas vezes as tabelas de preços elaboradas por órgãos de classe, desde médicos até cooperativas. Dentre os casos julgados pelo Cade há um que guarda enorme similaridade com a Medida Provisória 832. Trata-se do caso Sinditanque-MG, no qual o Cade condenou referido sindicato e seu ex-Presidente por formação de cartel em razão da utilização de uma tabela de preços mínimos de frete para o transporte de combustíveis em Minas Gerais (processo administrativo 08012.007002/2009-49). Ontologicamente, a Medida Provisória 832 não difere em nada da tabela de preços utilizada pelo Sinditanque-MG. E, do ponto de vista prático, o efeito anticompetitivo e prejudicial ao mercado é idêntico em ambos os casos. Estamos diante de uma Medida Provisória que institui um cartel nacional de fretes, capaz, pelo seu próprio objeto, de gerar elevação generalizada dos preços das mercadorias transportadas pelo cartel em virtude do aumento do custo do frete.
O que estamos assistindo, em verdade, é o início do fim do livre mercado no Brasil. Ao ceder às pressões de grupos sociais interessados em melhorar seus rendimentos particulares ou em reduzir seus custos privados por meio da coerção estatal (medidas provisórias), o Governo está se afastando da democracia capitalista e se embrenhando no pantanoso terreno do capitalismo de compadrio, onde as pessoas que têm maior influência sobre o Governo (seja por prestígio, por lobby, por corrupção ou por força bruta como ocorreu no bloqueio das estradas) obtêm resultados econômicos positivos e todos os demais são prejudicados. Se cada setor econômico começar a negociar com o Governo nesses parâmetros, o Brasil sucumbirá de vez e muito rapidamente.
É urgente revisitar as garantias e princípios estabelecidos no Título VII da Constituição, que assenta a ordem econômica constitucional sobre os pilares da valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, atuando em um sistema de livre mercado. Se assim não fizermos, estraremos muito em breve vivenciando o apocalipse do livre mercado no Brasil.
*Arthur Villamil é CEO no escritório Neves & Villamil Advogados Associados; é advogado do Depto. Jurídico Cível/Comercial do Minaspetro.

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