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Plataformas no mar, bombas de gasolina e carros, carros, carros. É difícil dissociar a palavra ‘petróleo’ de alguma dessas imagens. Mas, quando começou a ser explorada modernamente nos Estados Unidos, na segunda metade do século XIX, a matéria-prima que criaria a ‘sociedade do hidrocarboneto’ – na expressão empregada pelo americano Daniel Yergin, autor do clássico O petróleo: uma história mundial de conquistas, poder e dinheiro (publicado originalmente em 1991) – era apenas ‘a panaceia da Pensilvânia’. Explica-se: antes de se tornar a matriz energética que redesenhou a economia mundial, o petróleo foi usado para aliviar dores de cabeça e de dente e até ferimentos de animais. Não é de hoje, no entanto, que o ‘ouro negro’, o ‘maior e mais difundido negócio’ do século XX, deixou de ser uma espécie de remédio para todos os males econômicos da civilização que ele, por assim dizer, fez andar. Em tempos de mantras como ‘baixo carbono’, ‘energia limpa’ e ‘combustível renovável’, o próprio petróleo se transformou em dor de cabeça para as companhias que mergulharam fundo em seus poços – às vezes, até no nome. Como a Petrobras, por exemplo.
Perto de completar 70 anos – foi fundada em 3 de outubro de 1953, no governo de Getulio Vargas (1882-1954) -, a estatal viveu dias de maremoto no mês passado. Atropelando desde o estatuto da companhia até o ministro da Economia, Paulo Guedes, o presidente Jair Bolsonaro anunciou, em suas redes sociais, que o general Joaquim Silva e Luna, diretor da Itaipu Binacional, substituiria Roberto Castello Branco no comando da Petrobras. Deram nos nervos do ex-capitão os novos aumentos no preço dos combustíveis tendo como parâmetro o valor praticado no mercado internacional. Na segunda-feira 22 de fevereiro, as ações da companhia sofreram uma queda de 20%, diante do temor dos investidores de uma ingerência política nas diretrizes da empresa.
A tormenta não poderia ter ocorrido em pior momento. Em todo o planeta, o setor petrolífero passa por transformações comparáveis às experimentadas pela indústria do carvão. Na prática, mundo afora as petroleiras se defrontam com o desafio de rever suas estratégias: vão continuar atuando nas áreas de óleo e gás ou se tornarão empresas de energia?
Na opinião de especialistas ouvidos por ÉPOCA, a Petrobras tem derrapado nessa frente – em um dilema que não é exclusividade sua. ‘Quem cuida desse assunto precisa de liberdade e de confiança. Interferências (políticas) assustam as pessoas da própria empresa, sobretudo quando se trata de questão ambiental em um governo que não é tão ESG friendly’, ponderou Heiko Spitzeck, gerente do Núcleo de Sustentabilidade da Fundação Dom Cabral (FDC), referindo-se à sigla, em inglês, para meio ambiente, social e governança.
De fato, como se sabe, não há nada de ‘amigável’ no trato do governo Bolsonaro com questões ambientais. A própria gestão de Castello Branco já comportava críticas de ambientalistas, e mesmo de ex-integrantes dos quadros da Petrobras, por sua ênfase em combustíveis fósseis. A venda da totalidade da participação da Petrobras Biocombustível em usinas de biodiesel estava afinada com essa diretriz. A escolha do general Silva e Luna para o cargo máximo da estatal tem tudo para representar a continuidade do posicionamento até aqui exibido pela companhia. ‘Ele vem para fazer uma administração muito mais alinhada ao Planalto e os sinais do governo mostram que a agenda verde não é prioritária’, observou Thomaz Favaro, diretor para o Brasil e Cone Sul da Control Risks, consultoria global de riscos.
‘Ambientalistas fizeram várias críticas à gestão de Roberto Castello Branco na Petrobras. Com o general Joaquim Silva e Luna no comando da empresa, a expectativa é que o confronto se acirre’
Procurada por ÉPOCA, a Petrobras não respondeu se a troca na presidência pode ou não dificultar sua estratégia ambiental. A estatal, entretanto, declarou em nota enviada à revista que possui algumas metas claras: ‘A Petrobras anunciou 10 compromissos de sustentabilidade em seu Plano Estratégico 2021-2025. Em relação à transição energética ressaltamos o compromisso de reduzir as emissões absolutas de gases de efeito estufa em 25% em 2030 em relação a 2015. Trata-se de uma contribuição concreta, relevante e imediata para a redução das emissões de gases de efeito estufa, com cobertura de 100% das operações da empresa’, afirmou, ressaltando que em 2020 registrou redução de emissões pelo sexto ano consecutivo.
A companhia frisou que possui uma série de bons indicadores entre as petroleiras em termos de emissões, ‘graças a uma melhoria de mais de 40% em nossa eficiência desde 2009’, e que trabalha com um cenário considerando um valor de US$ 50 por barril no longo prazo, ‘compatível com cenários de transição acelerada alinhados ao Acordo de Paris’.
Pontuou ainda que ‘está comprometida em produzir energia acessível para a sociedade, com uma operação segura, eficiente, de baixo custo e com menos emissões de carbono. Hoje, de fato, a Petrobras produz petróleo com menos emissão do que a média mundial, o que representa uma contribuição real e presente à redução de emissões’. Para a empresa – que prevê investimentos de US$ 1 bilhão em compromissos ambientais até 2025 e frisa que já atua na área elétrica, além de investir em pesquisa e desenvolvimento de fontes renováveis -, mesmo com a transição energética, haverá uma necessidade grande de petróleo na Terra.
‘É uma questão de pouco tempo para que um imposto sobre carbono seja global. Companhias com grandes reservas já estão sendo afetadas. Quanto vale hoje a reserva do pré-sal e quanto valerá em dez anos?’, questionou Claudio Frischtak, fundador da Inter.B Consultoria Internacional de Negócios.
‘Como diz o velho ditado, ‘A Idade da Pedra não acabou por falta de pedra’ e a Era do Petróleo não vai acabar por falta de óleo”, constatou David Zylbersztajn, sócio da DZ Negócios com Energia e ex-diretor da Agência Nacional do Petróleo (ANP). Para ele, a Petrobras está atrasada em comparação com outras empresas por ter praticamente quebrado em 2015 – a referência é, claro, o petrolão, que estourou no ano anterior e quase levou a empresa ao fundo do poço, com o perdão do trocadilho – e também devido ao ambiente monopolista. Em sua opinião, o ideal seria a companhia tentar parcerias em setores como o da energia eólica ou solar, e não insistir, por exemplo, no etanol. Spitzeck, da FDC, pensa na mesma direção. A saída estaria na aquisição de empresas que trabalham com energia renovável para permitir uma mudança radical no portfólio da estatal, que nem de longe é vista como uma ‘opção verde’.
Grosso modo, empresas com forte presença estatal, como a Petrobras, estão mesmo dobrando a aposta em petróleo e gás, aproveitando a alta recente dos preços. Algumas buscam novas tecnologias para provar que o combustível pode ser mais ‘limpo’, buscando com isso dar maior sobrevida ao óleo. Empresas privadas, todavia, focam mais na transformação energética, já cristalina em países ricos, que traçam metas ambiciosas para o fim dos carros movidos a gasolina. E isso justamente após um ano em que os preços do petróleo despencaram, diante da pandemia do novo coronavírus.
No universo das companhias particulares, porém, há uma divisão, apontada pelos analistas do setor: empresas americanas seguem a tendência de bombar versões menos poluentes do óleo – a Chevron, por exemplo, acredita que o petróleo ainda representará 47% da fonte global de energia em 2040, embora bem mais sustentável do que atualmente -, enquanto na Europa, gigantes do porte da anglo-holandesa Shell, da inglesa BP, da norueguesa Equinor e da francesa Total buscam se preparar para um cenário no qual o emprego de combustível fóssil será bem menor que o atual.
Glauco Paiva, gerente executivo de Relações Externas da Shell Brasil, sublinhou que a companhia tem o compromisso de emissão líquida zero até 2050 e que as operações no Brasil estão em consonância com esse propósito, alinhado aos objetivos do Acordo de Paris. ‘Com linhas de negócio e projetos em hidrogênio, biocombustíveis, energia solar e eólica, e presença no mercado livre, nós somos um empresa integrada de energia. Acreditamos num futuro energético com um mix diversificado e menos intensivo no uso de carbono’, atestou ele.
A BP, que em 2020 anunciou a meta de também ser neutra em carbono até 2050, pretende aumentar em dez vezes o investimento anual em energia de baixo carbono, de US$ 500 milhões em 2019 para aproximadamente US$ 5 bilhões em 2030. Até lá, garante, aumentará em 20 vezes a capacidade de produção de energia renovável e reduzirá em 40% a produção de petróleo – no ano passado, um relatório da companhia estimou que o consumo do combustível pode não retornar jamais aos níveis anteriores ao surto epidêmico do sars-CoV-2. O mercado brasileiro, afirmou a empresa, é estratégico nessa guinada. Ela atua com biocombustíveis no mercado nacional desde 2008 e em 2019 fechou uma joint venture com a Bunge Bioenergia, entre outras iniciativas. Em nota, a BP disse que tem ‘não só a oportunidade, mas também uma grande chance de ser protagonista nessa transição energética, que irá acontecer e terá impacto em muitos países’.
A Equinor – que se chamava Statoil e em 2018 decidiu tirar o ‘oil’ (óleo) do nome, mirando o planeta pós-petróleo – se propõe a zerar suas emissões líquidas até 2050. A eficiência energética é a chave para alcançar esse objetivo. ‘Importante lembrar que hoje a Equinor é a empresa do setor de óleo e gás que produz com as emissões mais baixas no mundo’, posicionou-se a empresa. A diversificação, destacou, é outra de suas marcas, citando a ‘geração eólica offshore, por exemplo, planta eólica com base flutuante’. A Equinor já tem projetos desse gênero na Noruega natal e na Escócia, e em 2020 encaminhou pedido de licenciamento ao Ibama para um projeto de complexo eólico offshore no Brasil, nos estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo, com capacidade total de 4 GW e potência instalada suficiente para abastecer 2 milhões de residências.
Quem também decidiu mudar de nome foi a Total: depois de uma assembleia marcada para maio, a companhia deverá se chamar TotalEnergies. A nova marca ‘vai simbolizar nossa estratégia de transformação para uma empresa de energia abrangente’, afirmou seu presidente, Patrick Pouyanné. A companhia está investindo pesado em energias renováveis e quer que, em dez anos, o petróleo represente no máximo um terço de sua produção, em comparação a mais da metade hoje em dia.
De volta ao Brasil, rebatizar a Petrobras, algo que nem sequer está em debate, não tirará as manchas de óleo – e do passado – da estatal. O nome do produto capaz de fazer isso é futuro. Não há outro remédio.