“Não existe velha ou nova política. Existe política”

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Fonte: Tribuna da Bahia

Por Osvaldo Lyra

O jornalista William Waack acredita que o sistema político brasileiro é um dos empecilhos para que o governo Jair Bolsonaro dê certo. “É um campeão de votos contra um grupo de representantes do povo, eleitos pelo sistema proporcional de votos que garante a desproporção”, avalia, em entrevista exclusiva à Tribuna. O ex-âncora da TV Globo agora continua sua atuação jornalística por meio da internet e dando palestras pelo Brasil. Na última sexta-feira, por exemplo, ele foi um dos um dos palestrantes do Encontro de Revendedores de Combustíveis da Bahia, em Feira de Santana. Em conversa com a reportagem, ele fez uma análise da conjuntura política no Brasil e declarou que o presidente da República "é uma vítima da própria vitória eleitoral". No papo, ele também analisa o papel do jornalismo e nega que haja ameaça a liberdade de expressão no país.

Tribuna da Bahia - Como você avalia o momento em que vivemos hoje no Brasil e o começo do governo Bolsonaro? Muitos tropeços?
William Waack - Acho que o momento em que nós estamos vivendo é muito delicado, perigoso, grave e sério. Estamos chegando num impasse político entre Executivo e Legislativo. Isso é resultado não só da eleição do Jair Bolsonaro, mas também do desenho do nosso sistema de governo, que coloca um campeão de votos, que é o chefe do Executivo, na obrigação de se entender com o poder Legislativo que tem enormes prerrogativas e, ao mesmo tempo, um déficit de representatividade. É um campeão de votos contra um grupo de representantes do povo, eleitos pelo sistema proporcional de votos que garante a desproporção. Esse é o desenho da nossa crise política. Não depende dos nomes que estão lá. É um desenho nosso. Agora, está agravado porque a economia não está se recuperando como as pessoas inicialmente achavam que se recuperaria. Há uma impaciência legítima e palpável no ar. Uma cobrança que o governo não poderia se queixar dela, porque ninguém acreditou que esse governo teria uma lua de mel. E não teve mesmo. É um momento político muito delicado, porque há uma desconfiança mútua entre os múltiplos atores. O tempo não está dando nenhum refresco e estamos sendo sufocados por uma crise fiscal gravíssima, que exige um entendimento político que até aqui não surgiu.

Tribuna - E a gente tem as crises criadas dentro do próprio Planalto e pelo entorno dele. Isso é uma situação que preocupa muito também?
William Waack - Acho que o Jair Bolsonaro chegou à vitória eleitoral empurrado por uma onda de transformação política. Essa onda é disruptiva. Ela congregou diversas forças antagônicas que tinham um objetivo comum: tirar o PT do poder. Tinha outro objetivo mais ampliado, que é mudar o sistema que as pessoas entendem como sendo prejudicial à vida delas. E Jair Bolsonaro foi a figura que expressou essa demanda do eleitorado. Como acontece com ondas amplas desse tipo, uma vez que elas conseguem o primeiro objetivo delas, e esse foi conseguido com a derrota do PT na eleição do ano passado, os diversos componentes da onda começam a disputar entre si a primazia das decisões. Então, boa parte das confusões que esse governo se meteu desde que assumiu em janeiro resulta dessa disputa entre os vários componentes dessa luta disruptiva. É o governo com vários núcleos e esses núcleos não têm relação alguma nas questões fundamentais ou os mesmos pontos de vista. Haverá o momento que ou um núcleo desses assume predominância nas decisões, ou o presidente será obrigado a arbitrar entre eles ou o presidente terá enormes dificuldades em governar, porque ele está sendo arrastado para vários lados ao mesmo tempo.

Tribuna - Acha que o presidente Bolsonaro já percebeu a dimensão do cargo que assumiu? E se não o fez, quando fará?
William Waack - Ele é uma vítima da própria vitória eleitoral, obtida em condições excepcionais. Ele disputou uma eleição contra os instrumentos tradicionais de se fazer política no Brasil e venceu. A interpretação dele dessa vitória é a de que só foi obtida por conta da arregimentação obtida pelas redes sociais. Ao fazer essa interpretação, ele se torna prisioneiro dela - assumindo que isso seja fato, e não é, já que a vitória dele se deve a uma conjunção de fatores dos quais um sem dúvida foi a capacidade do grupo dele de mobilizar as por plataformas digitais. Ele se torna vítima desse discurso porque ele supõe que tudo se deve a isso e isso não é suficiente para governar. Ele está sendo vítima do discurso eleitoral. A mobilização através de redes sociais funciona por um objetivo específico: fazer com que as pessoas exerçam, no direito do voto, aquela opinião que o candidato quer. Isso não serve para governar. Então, paradoxalmente, vítima da própria vitória.

Tribuna - Muita gente diz que ele é vítima também da nova política que ele apresentou. Como vai se dar essa relação com o Congresso, sendo que o próprio Congresso cobra mais clareza nessa relação? Porque essa nova política não foi apresentada para os deputados e senadores...William Waack - De novo ele está sendo um refém de bordões eleitorais de grande alcance. Um dos mais eficazes foi dizer para as pessoas é que a política que eles até aqui experimentaram, a tal velha política, deixaria de existir se ele fosse o vitorioso. Ocorre que isso é uma falácia. Não existe velha ou nova política. Existe política. E o nosso sistema de governo, político e eleitoral estavam antes e estão aí. Eles formam o conjunto dentro do qual os atores políticos conseguem ou não se entender. Então, de novo, ao reiterar que ele não fará a velha política, ele está desistindo de fazer política. E é isso que lhe está causando grandes dificuldades.

Tribuna - Inclusive, na falta de relacionamento com os partidos e na formação de bancadas que lhe garantam mais tranquilidade no Congresso?
William Waack - Acho que é mais amplo do que isso. Acho que o que lhe falta, em termos de articulação política hoje, é a dimensão quase catastrófica das crises simultâneas que o país vive. O país vive uma crise fiscal, que é uma crise social, e uma crise de crime, que é uma crise social também. Para qualquer projeto que ele queira levar adiante, ele precisa dos 308 votos dos deputados. Isso é muito claro. Mas é muito maior a necessidade de articulação política que se demanda de uma figura como a dele hoje: que é dar sentido, uma direção e uma visão para a sociedade do tamanho do problema que a gente enfrenta. E o tempo trabalha contra nós e não é controlado por nós. É isso que acho que falta fundamentalmente. Os próprios parlamentares da bancada governista se queixam de falta de orientação, coordenação e entendimento. O que é normal, dado o fato que é uma bancada nova, que foi só se conhecer no dia 1º de fevereiro. Mas o que me parece que prejudica mais é a dificuldade que ele está encontrando de dizer para o país inteiro em que lugar a gente está.

Tribuna - Na sua opinião, a Reforma da Previdência vai marcar realmente um novo estágio no governo e no próprio Brasil? Ou você acredita que a gente está longe de começar a respirar o momento de tempos mais positivos na economia?
William Waack - A Reforma da Previdência não tem Plano B: ou a gente aprova a Reforma da Previdência ou estaremos condenados a prosseguir no pior cenário que existe, que é o atual. O pior cenário que existe é o que estamos: estagnação, baixa produtividade e competitividade, baixo crescimento, alto desemprego... É um beco sem saída. A saída é iniciar esse tipo de reforma. Ela é necessária, mas não é suficiente. Me parece essencial reiterar isso de maneira enfática. Ela é apenas um começo. Agora, se esse começo não for feito, vamos passar por uma situação econômica que já se desenha um pouco de recessão, estagnação, fuga de investidores e, mais ali na frente, as consequências de um alto endividamento: juros altos e inflação alta.

Tribuna - O impeachment de Bolsonaro está na mesa e qual a possibilidade legal de prosperar?
William Waack - Não está na mesa e não vejo possibilidade legal de prosperar nesse momento. A política é o território do imponderável e do imprevisível. Mas uma resposta direta e objetiva a sua pergunta: o impeachment está na mesa? Eu diria não e não.

Tribuna - O Congresso que a população elegeu vai ser capaz de entender quanto o Brasil realmente precisa das reformas ou vai seguir o rumo corporativista que ela tem se colocado hoje e, inclusive, travado um duelo muito grande com o Planalto?
William Waack - Eu nunca falo "o Congresso" porque nós estamos falando de uma esfera da política integrada por forças muito diferentes entre si - inclusive aquelas que entendem perfeitamente a gravidade da situação na qual nós estamos. Eu acho que boa parte das transformações políticas que o país vem vivendo se deram pelo fato de as pessoas terem se interessado por política, se engajado por política e elas mesmas levado a um grau de renovação que há um ano nem você e nem eu poderíamos prever. Então, o Congresso como tal depende da capacidade de lideranças políticas organizarem um movimento com determinado sentido. E dos setores organizados da sociedade de exercerem a pressão nesse sentido. Eu nunca coloco o Congresso como o local dos corporativistas, do atraso, da bandalha ou da resistência. Afinal de contas lá é a esfera da política da qual tem que vir as respostas que o país precisa. Elas demorarão se particularmente o Executivo continuar com a atual postura. Quer dizer, ‘eu fiz a minha parte e agora o problema é deles'. Se o Executivo quer a aprovação dos seus projetos, quanto os que lidam com crime ou com dívida, ele tem que se organizar para fazer isso no Legislativo. E desembarcar desse discurso de que ali só tem gente interessada em acabar com ele.

Tribuna - Tem um movimento que foi iniciado nessa semana pelo próprio presidente da Câmara e do Senado estabelecerem um prazo de 60 dias para garantir ao mercado, sobretudo internacional, que a Reforma da Previdência vai ser votada - independente do envolvimento ou não do Planalto. Você tem a expectativa que essa sinalização aconteça para o mercado, sob o risco inclusive de quebra de confiança e de o país amargar uma crise maior do que está hoje?
William Waack - A maneira como o [Davi] Alcolumbre e o [Rodrigo] Maia colocaram isso não foi em termos de um prazo rígido de 60 dias. O que eles estão dizendo é que, independentemente das dificuldades do governo em organizar a sua própria base, que está desorganizada, eles como presidentes das duas casas legislativas querem levar adiante algo que eles entendem que tem que ser levado adiante. É uma sinalização para o mercado de caiu a ficha dos atrasos e das dificuldades de articulação política. Eles respondem a pressões de grupos econômicos empresariais que, positivamente, pararam de esperar que alguém faça e começaram eles mesmos a forçar também.

Tribuna - Como os jornalistas conseguirão sair ilesos desses tiroteios estabelecidos hoje no país, sobretudo nas redes sociais, dividindo o Brasil em A e B e causando esse clima de instabilidade que vivemos hoje?
William Waack - Acho que o fenômeno das fake news no Brasil está associado à perda de referência que as pessoas têm em relação aos que tradicionalmente foram os guardiães da veracidade objetiva dos fatos, digamos assim. As pessoas se sentiram órfãs disso é que facilita a fake news. Fake news não é alguém inventar que o Lula tem 10 dedos, mas é as pessoas terem confiança em quem diz que ele tem 10 dedos. Essa perda de padrão prejudicou os grandes grupos de comunicação, em especial. É um resultado dessa onda disruptiva. Quanto ao papel do jornalismo me parece o de sempre, desde que a imprensa existe. Toda a vez que o jornalismo perde o foco e o foco é o público, ele sofre. Não me preocupam tanto as tecnologias que permitem todo esse tiroteio, usando a expressão da formulação da sua questão, mas me preocupa em boa parte do jornalismo a perda de boa parte de referência, que é o público.

Tribuna - Até onde vai a liberdade de opinião das grandes redes de TV ou dos grandes grupos de comunicação do país?
William Waack - Vai longe, sempre foi longe. Nunca foi algo escondido. Boa parte dos grupos empresariais de comunicação tem a sua própria agenda política, o que eu acho saudável, normal e desejável. O problema central é o público se sentir órfão. O público identifica a opinião. Ele pode gostar ou não, mas ele sabe que é opinião. Isso não é a questão. É quando acha que o que está sendo colocado para ele como produto audiovisual, por exemplo, não corresponde a realidade. É isso que aconteceu.

 

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