O Estado de S.Paulo – Artigo
A galinha dos ovos de ouro, clássico do fabulista grego Esopo, do século 6 a.C., conta a história de um casal que sacrifica sua fonte de prosperidade na esperança de obter riqueza imediata. O etanol brasileiro simboliza essa galinha dos ovos de ouro na transição energética: um pilar estratégico que fortalece a economia e reduz emissões de gases de efeito estufa (GEE). Desde o início do Proálcool, em 1975, o biocombustível já evitou a emissão de mais de 600 milhões de toneladas de GEE, consolidando o Brasil como líder global em energia limpa. Proteger esse tesouro exige enfrentar desafios que podem comprometer seu futuro.
O etanol brasileiro é uma história de sucesso construída sobre um modelo único de sustentabilidade e eficiência. Desde 1976, a mistura de etanol anidro à gasolina é obrigatória no Brasil, variando entre 18% e 27,5%. Essa política estabilizou o mercado e reduziu a pegada de carbono dos combustíveis consumidos no País. Nos últimos anos, o etanol de milho vem ganhando espaço, ampliando a oferta do biocombustível e garantindo o abastecimento, mesmo em cenários de alta volatilidade, evitando crises como as que marcaram a década de 1980.
O desabastecimento daquela época serve como alerta para o setor. Na época o aumento do preço do açúcar no exterior elevou o custo de produzir etanol, gerando desabastecimento e abalando a confiança dos consumidores. O aumento da produção de etanol de milho garante que situações similares não voltem a ocorrer, preservando o abastecimento mesmo em cenários de alta volatilidade no mercado internacional.
Nos últimos anos, o setor sucroenergético enfrentou desafios adicionais. Governos de diferentes espectros políticos adotaram políticas controversas para controlar os preços dos combustíveis. Durante o governo Dilma, o preço da gasolina foi artificialmente mantido abaixo do mercado para conter a inflação, prejudicando a Petrobras e desestimulando o consumo de etanol.
O Brasil corre o risco de comprometer o desenvolvimento de seu maior trunfo, prejudicando o avanço em direção a um futuro mais sustentável. Já no Bolsonaro, às vésperas da eleição de 2022, foi aprovada uma lei complementar que forçou a redução do ICMS como manobra para baixar os preços dos combustíveis.
A redução do ICMS sobre combustíveis, iniciada no governo Bolsonaro e prorrogada pelo governo Lula, causou um impacto devastador nas finanças estaduais e na competitividade do setor sucroenergético. A medida afetou gravemente as contas dos Estados e desestimulou investimentos no setor de biocombustíveis. Estimativas da União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia (Unica) indicam que, nos dois primeiros meses de prorrogação da desoneração pelo governo Lula, o impacto sobre os investimentos foi de cerca de R$ 3 bilhões. Essa situação ampliou as dificuldades do setor, agravando a insegurança quanto à continuidade dos investimentos necessários para sua sustentabilidade e crescimento.
O governo atual adota uma política de preços que preocupa o setor de biocombustíveis e as metas climáticas do Brasil: a nova política de preços da Petrobras. Essa política subsidia combustíveis fósseis, pois o combustível importado é vendido no País por um valor inferior ao pago pela estatal no mercado externo. Ao desestimular o consumo de etanol e aumentar a dependência de combustíveis fósseis importados, o Brasil enfraquece seu compromisso com a transição energética e a sustentabilidade, em um momento crítico de enfrentamento das consequências da crise climática.
Os eventos climáticos extremos no Brasil destacam a urgência de ações concretas para mitigar as mudanças climáticas. No caso do Pantanal, a situação é ainda mais alarmante. Estudos recentes alertam que, se o aquecimento global prosseguir nesse ritmo, o bioma pode desaparecer até o final do século.
Nesse contexto, o etanol é peça-chave para reduzir emissões no transporte e um elemento essencial na transição energética do País. A aprovação, em 2024, do “Combustível do Futuro” e do marco legal do hidrogênio ampliou o potencial do etanol em novas aplicações, como a produção de Combustível Sustentável de Aviação (SAF, na sigla em inglês) e hidrogênio de baixo carbono. Com essas iniciativas, o etanol pode se consolidar como solução estratégica para descarbonizar setores como aviação e indústria, oferecendo uma alternativa sustentável para o futuro energético do Brasil e do mundo.
O governo Lula tem adotado iniciativas corretas para fomentar a produção de biocombustíveis e promover um futuro mais sustentável. Contudo, tem dado sinais trocados com ações que favorecem a competitividade de combustíveis fósseis. Essas ações desestimulam os investimentos no setor sucroenergético, especialmente em ciência, tecnologia e inovação, essenciais para aumentar a produtividade dos biocombustíveis. Com isso, o Brasil corre o risco de comprometer o desenvolvimento de seu maior trunfo, prejudicando o avanço em direção a um futuro mais sustentável. Não podemos repetir o erro da fábula de Esopo e matar a nossa galinha dos ovos de ouro da transição energética. •
José Serra – economista