Empresas de combustíveis fósseis fazem lobby para manter “vício” em gás natural

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CNN

Imagine um mundo totalmente livre de combustíveis fósseis. Não se trata mais um conceito abstrato, já que a maioria das coisas do nosso cotidiano pode ser alimentada por eletricidade (como dirigir um carro, aquecer uma casa, carregar um telefone ou computador) e toda essa energia pode vir de fontes como o vento, o sol e o movimento natural da água.
Para setores que precisam de mais força do que a energia solar ou eólica podem oferecer (como aviação, siderurgia e produção de concreto) há o hidrogênio. E ele está por toda parte.
Há muita empolgação e bilhões de dólares sendo despejados na indústria do hidrogênio, mas nem todos os tipos de hidrogênio são criados de forma igual. O hidrogênio é o elemento mais abundante do planeta, mas precisa ser isolado de sua fonte, e isso por si só consome energia. No momento, ele é derivado principalmente de combustíveis fósseis (gás natural, carvão e petróleo) no que é conhecido como hidrogênio “cinza”. Quando o dióxido de carbono (CO2) emitido durante a produção é capturado, obtém-se o chamado hidrogênio ‘azul”.
Enquanto os governos ao redor do mundo elaboram novas estratégias de energia para remover rapidamente o carbono de suas economias, as principais empresas de combustíveis fósseis estão fazendo lobby para manter o hidrogênio azul na mistura. Mas, segundo os especialistas em energia e clima, ao fazer isso eles irão potencialmente bloquear nas próximas décadas o uso global de gás natural, um combustível fóssil que aquece o planeta.
O hidrogênio mais promissor para o clima é realmente o tipo “verde”, que é derivado da água e é processado com energia 100% renovável, o que o torna uma fonte de energia com potencial zero de emissões. O hidrogênio verde é visto como uma solução revolucionária para as emissões nas indústrias mais pesadas, mas ainda há um longo caminho a percorrer —menos de 1% do hidrogênio mundial hoje é verde, de acordo com a Fitch Ratings. O resto vem mesmo de combustíveis fósseis.
Uma análise fornecida à CNN do think tank de clima InfluenceMap, que usa dados para rastrear a influência de negócios e finanças na política climática, descobriu que várias grandes empresas de combustíveis fósseis estão usando a campanha publicitária do hidrogênio para manter o gás natural no jogo, e isso está tendo um impacto em uma decisão crucial que está por vir na União Europeia.
Os 27 países da União Europeia (UE) estão tão divididos sobre o futuro papel do gás natural que o braço executivo do bloco, a Comissão Europeia, há meses não entrega o que deveria ser uma simples lista de fontes de energia que considera sustentáveis.
Após vários atrasos, a decisão foi novamente adiada nesta semana, enquanto os países discutiam se o gás e a energia nuclear deveriam fazer parte da lista e se deveriam ser chamadas de formas “verdes” ou “transitórias” de energia.
Versões anteriores da lista, conhecida como Taxonomia Financeira Sustentável, não mencionavam gás ou energia nuclear, como informou uma fonte à CNN, e agora autoridades da UE estão dizendo publicamente que as fontes quase certamente serão incluídas. Isso poderia permitir que as operações de gás natural continuassem com um selo verde de aprovação e desencadear uma onda de investimento privado e fundos públicos de recuperação verde para novos projetos.
Em artigo de opinião para o site Euractiv, Greta Thunberg e outros ativistas do clima descreveram a lista como “ação climática falsa’.
Usando um banco de dados de mais de 350 das maiores companhias do mundo, o InfluenceMap identificou várias das principais empresas de combustíveis fósseis que atuaram no lobby da UE na decisão sobre combustíveis sustentáveis, bem como duas outras políticas sobre gás e hidrogênio. As três empresas mais ativas foram Equinor, TotalEnergies e BP, informou a análise.
As associações do setor de gás que representam gigantes dos combustíveis fósseis que operam na Europa também argumentam que o gás natural em novos projetos poderia ser misturado com hidrogênio, incluindo hidrogênio azul, para torná-lo “mais limpo”. Vivek Parekh, analista do InfluenceMap, descreveu esse lobby para a CNN como uma “lenta penetração” do gás natural de volta à política energética da UE.
“As posições apresentadas inicialmente pela Comissão Europeia visavam empurrar a infraestrutura de gás fóssil para o fundo do poço e tentar evitá-la o máximo possível”, disse Parekh.
“Mas parece que a indústria do gás, depois de uma luta tão longa, conseguiu enfraquecer os critérios de sustentabilidade a seu favor. E isso essencialmente assegura o papel do gás fóssil e seu futuro energético de longo prazo. Isso ocorre na União Europeia, que supostamente é um líder político no que diz respeito ao clima”.
A UE tem um dos planos climáticos mais ambiciosos do mundo, com o objetivo consagrado em lei de reduzir as emissões em 55% até 2030, em relação aos níveis de 1990. Suas políticas tendem a influenciar as de outras partes do mundo, tornando essa decisão particularmente importante.
Pascal Canfin, o legislador da UE que preside o poderoso comitê de meio ambiente do bloco, disse estar esperançoso de um acordo para romper o impasse. Uma proposta apresentada, como Canfin contou à CNN, é incluir gás, mas impor um limite de quanto dióxido de carbono (CO2) novos projetos devem ser autorizados a emitir. A segunda poderia ser permitir novos projetos de gás somente quando eles substituírem o carvão, e uma terceira seria uma “cláusula de caducidade” encerrando qualquer nova infraestrutura de gás a partir de 31 de dezembro de 2030.
“Portanto, aqui estão três condições principais sob as quais você pode definir seu projeto, ou seja, o espaço onde o gás pode ser considerado útil para a transição, mesmo se for fóssil”, pontuou.
A Equinor e a TotalEnergies estão entre as empresas que fizeram campanha contra o limite de CO2 proposto, de acordo com o InfluenceMap.
A Equinor, que está investindo em hidrogênio verde, mas também continua fazendo perfurações para obter mais petróleo e gás, confirmou à CNN que tem se envolvido com a política da UE e disse que apoiaria o limite de CO2 em projetos de eletricidade e aquecimento, mas que não o faria em outras circunstâncias, como por exemplo em novos projetos de gás para ajudar a transição do carvão em alguma região.
“Como muitos governos de estados-membros, vemos o gás natural como a chave para os esforços de descarbonização da UE”, disse a empresa em um comunicado à CNN. O texto enfatizou que o gás natural pode ser “descarbonizado” por meio da captura e armazenamento de carbono.
Mas nenhuma tecnologia que existe hoje pode remover 100% do CO2 do gás natural, e um estudo de referência sobre o hidrogênio azul da Universidade Cornell em agosto mostrou que o hidrogênio azul, no momento, emite 20% a mais do que o gás natural. Em parte, isso ocorre porque o gás metano do efeito estufa tende a vazar no processo de captura de carbono.
A empresa francesa TotalEnergies não comentou sua posição sobre o limite de emissões, mas disse que está investindo em hidrogênio azul e verde. Ela argumentou que o gás natural é atualmente “a melhor opção para fornecer ao mundo a energia de que ele precisa enquanto combate o aquecimento global” e é até “um campeão da transição energética”.
A BP não respondeu a um pedido de entrevista da CNN.
Um crescente vício em gás
Apesar de seu nome soar limpo, o gás natural é um dos principais contribuintes para a crise climática. É constituído principalmente de metano, um gás de efeito estufa 80 vezes mais potente que o dióxido de carbono no curto prazo. Ele começou a ser usado nos anos 70 e decolou nos anos 90, quando era vendido como um “combustível-ponte”, uma alternativa mais limpa ao carvão e que acabaria sendo descartada quando a energia renovável emplacasse.
Mas o mundo se tornou um tanto viciado em gás, e essa “ponte” se tornou tão longa que os governos estão percebendo que não sabem realmente quando e onde ela termina.
O uso global de gás natural está em seu ponto mais alto, de acordo com a Agência Internacional de Energia (IEA). Na UE, o uso caiu um pouco desde o pico de 2010, mas não tanto, e ainda está acima dos níveis dos anos 90.
A escala de crescimento na UE é um sinal claro de que, mesmo na Europa, o gás não vai a lugar nenhum tão cedo.
Dados do Global Energy Monitor (GEM) demostram que, no final de 2020, havia cerca de 17 mil quilômetros de gasodutos em desenvolvimento na UE. São 65 projetos em 23 países no valor de 72,6 bilhões de euros (cerca de R$ 467 bilhões). Outros projetos de gás natural liquefeito estão avaliados em 15,5 bilhões de euros (cerca de R$ 99,7 bilhões).
Dependendo de como são construídos, novos projetos de gás natural tendem a se manter por algum tempo.
Greig Aitken, que gerencia o Europe Gas Tracker do GEM, disse que os oleodutos e as usinas de gás que eles atendem têm vida útil de 30 a 40 anos, alertando que qualquer nova infraestrutura de gás bloqueará o combustível fóssil e minará as metas climáticas do bloco ou forçará a projetos a serem abandonados.
“Um ponto crítico foi alcançado e realmente não deve haver nenhum novo comissionamento de infraestrutura de gás a partir de agora, dados os prazos envolvidos, a menos que as empresas e seus financiadores realmente aceitem a ideia de ter ativos perdidos em seus livros”, afirmou Aitken.
Então, onde fica o hidrogênio verde? O setor precisa de uma sorte inesperada em financiamento para construir mais eletrolisadores (as máquinas necessárias para extrair hidrogênio da água) bem como um grande aumento nas fontes de energia renovável.
Uma decisão como a da UE sobre taxonomia pode significar que o dinheiro que poderia ir para o hidrogênio verde é desviado para o azul.
Mas há um impulso forte no setor. Um novo projeto de hidrogênio verde parece surgir em algum lugar do mundo semanalmente, e até mesmo as empresas de combustíveis fósseis que promovem o hidrogênio azul estão começando a olhar para o verde também. A Agência Internacional de Energia Renovável diz que o hidrogênio verde pode se tornar mais barato do que o azul em 2030 se – e é um grande “se” – a indústria conseguir adesão suficiente.

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