Fonte: Valor Online
As empresas distribuidoras de gás liquefeito de petróleo (GLP), conhecido como gás de cozinha, avaliam que mudanças de regras propostas pelo governo podem criar obstáculos para o segmento e trazer impacto negativo para o consumidor. As duas alterações mais polêmicas dizem respeito à venda fracionada de gás e ao fim do uso de marcas de botijões. “Além do risco de quebrar as distribuidoras, traz muito mais risco de acidente e não trará redução de preço”, resume Pedro Turqueto, diretor de gestão da Copagaz.
Distribuidoras têm se munido de pesquisas de consultorias sobre o impacto das mudanças e os executivos das empresas estão entre idas e vindas a Brasília para conversar com deputados e com membros dos ministérios da Economia e de Minas e Energia. Em um relatório, a consultoria GO Associados definiu as mudanças como um equívoco, a LCA Consultores as considera preocupantes, uma avaliação semelhante à do Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro).
As possíveis alterações foram discutidas em um estudo, neste mês, da Secretaria de Avaliação, Planejamento, Energia e Loteria (Secap), ligada à pasta de Economia, e são objeto de consulta de mercado pela Agência Nacional de Petróleo (ANP) e debatidas em um comitê da pasta de Energia. Um dos entusiastas das mudanças é o diretor-geral da ANP, Décio Oddone, e a Secap se manifestou como favorável às mudanças, como ponto de partida para abertura do mercado a mais agentes e mais competição.
O governo avalia que as famílias mais pobres terão mais acesso ao gás de cozinha se não tiverem que pagar a totalidade do botijão. Cada unidade contém 13 quilos e, conforme a proposta, o consumidor poderia preencher com dois ou cinco quilos, por exemplo, conforme sua condição financeira. Já no caso das marcas, hoje os botijões pertencem às companhias distribuidoras e elas são responsáveis por eles. Na primeira venda, parte do custo é subsidiado pela distribuidora às suas revendas, e o consumidor paga a diferença e o custo da unidade cheia, cerca de R$ 70, em média. Quando o botijão fica vazio, o consumidor pode trocar por outro de outra marca sem o custo adicional do vasilhame.
A diferença é que essa outra marca não pode encher o mesmo recipiente, a menos que haja um contrato entre as empresas - ela entrega um cheio da sua marca e retira de casa o da concorrente, que volta à origem. Isso é feito pelas próprias empresas, para que cada uma seja responsável pelos seus botijões. O governo quer mudar esse ciclo.
"São 17 deslocamentos entre refinaria, distribuidora, revenda, residência, centro de destroca, que podem ter um outro modelo em que um caminhão adaptado leva o GLP até o local de abastecimento ou em que há estações de gás em que o consumidor possa fazer isso", diz Edie Andreeto, assessor técnico da Coordenação Geral de Petróleo e Gás Natural, do Ministério da Economia. Segundo ele, as mudanças discutidas visam também aumentar a energia final consumida, ao encurtar o circuito de gás.
"A quebra de marca vai trazer prejuízo para o consumidor. É ela que permite rastrear a responsabilidade por qualquer sinistro do botijão, que faz a empresa prezar pela manutenção e maior segurança do produto e por melhor prestação de serviço", diz Riadi Kadri, presidente da Consigaz.
Esse formato foi estabelecido com a autorregulação na década de 90, o que fez com que as empresas distribuidoras investissem na requalificação e segurança dos botijões e em campanhas, junto com reguladores, para reduzir as revendas clandestinas. Conforme as maiores companhias, são cerca de R$ 80 milhões a R$ 100 milhões de investimento por ano, de cada uma delas, para essas funções de requalificação e reposição periódica de vasilhames.
É uma exigência do Corpo de Bombeiros que a identificação de marca resista a explosões, por exemplo, para que a empresa seja responsabilizada. A Ultragaz foi uma das primeiras companhias a trabalhar a questão de marca com o consumidor, com o tal botijão azul. "Nossa percepção é que temos uma regulação moderna, que dá responsabilidade objetiva para as distribuidoras, que fazem investimentos altíssimos em segurança", diz Tabajara Costa, presidente da Ultragaz. "Vemos evolução em algumas propostas, como o fim da diferenciação de preço pelo uso [industrial ou residencial], mas em outras, que dizem respeito a fracionamento e marca, não enxergamos um benefício para a sociedade, em bem-estar, segurança e custo", diz Costa.
No entendimento das empresas e de alguns especialistas, o fracionamento pode trazer aumento de risco, uma vez que pretende pulverizar o abastecimento em mais pontos de apoio, e encarecer o produto, por uma questão de escala. O governo aponta os Estados Unidos como modelo e cita nos estudos as americanas como a U-Haul, que tem uma rede de estações de recarga, a Amerigas e a Suburban Propane. Mas as empresas dizem que, naquele mercado, apenas 4% do mercado é de cilindro, ante 80% no Brasil, e de consumo recreativo - para churrasqueiras, casas de veraneio e embarcações, uma vez que ele obrigatoriamente tem que ser usado fora de casa.
"Os únicos mercados que tem enchimento da forma proposta em maior escala são Gana, Nigéria e Paraguai", diz Turqueto. "Como o consumidor de baixa renda vai carregar esse botijão até uma estação de abastecimento?", complementa, ressaltando que o recipiente vazio pesa 15 quilos.
O assessor econômico avalia que as mudanças de fornecimentos não elevariam risco. "O abastecimento no granel por caminhões já acontece em centrais comuns em condomínios e restaurantes, por exemplo. Só necessitaria de adaptações no vasilhames para o consumidor que optar por isso", diz Andreeto.
A Secap também cita que a oferta de botijões de outros tamanhos, que não o padrão de 13 quilos de gás, ajudaria em preço e logística - e nesse deslocamento no granel. "Se o consumidor quer menos gás, as empresas já têm na prateleira hoje botijões de 5kg ou 8kg que, diga-se de passagem, não tem grande procura", diz Kadri. A LCA aponta que cerca de 35% das trocas de botijão é feita com mudança de marca, o que indica que o consumidor não se sente amarrado à marca.
Para solucionar a questão da distribuição pulverizada e para que isso não se reflita em custo, o Ministério da Economia quer um estudo sobre a criação da figura do Trocador Independente de Botijões, intermediário que atuaria com regulação do governo e com remuneração fixa para encher botijões de diferentes marcas.
"Com abastecimento pulverizado, o governo teria que aumentar a fiscalização para garantir questões de segurança e que não haja fraude no abastecimento", diz Cláudia Vieira, diretora da LCA. Isso poderia ser uma balança fraudada, por exemplo. Para Andreeto, é possível reduzir custos fiscalizatórios e manter rastreabilidade com novas tecnologias, por aplicativos e mesmo usando blockchains.
Um estudo do Sindigás aponta que há risco também quando há sobre-enchimento, que pode levar a explosão. "O governo não sinalizou meio de garantir rastreabilidade, o que tira o incentivo de manutenção", diz Cláudia.
O presidente da Consigaz aponta que a competição já é acirrada a ponto de levar a margens negativas em algumas regiões. "O botijão custa 7% do salário mínimo e já foi 13%, o que mostra que o aumento de segurança não adicionou custo extra para o consumidor. Há competição nesse mercado, não só entre as 19 distribuidoras como entre mais de 60 mil revendedores credenciados, e isso com redução de acidentes", complementa outro distribuidor que prefere não ser citado. "Se a questão é preço, a discussão deveria ser sobre o preço da molécula e sobre a carga tributária. Não vejo como as propostas atuais proporcionariam queda de preço e discordo do diagnóstico de que falta rivalidade", diz Cláudia.
O Inmetro diz que, em princípio, tem preocupações em relação às garantias de segurança do envase e do botijão. "Até então, quando o botijão de 13 kg é recarregado, o envase é realizado em área classificada, em procedimento de total segurança, longe dos consumidores. Em relação ao botijão, o modelo comercializado tem um bocal não conforme ao preenchimento fracionado - ou o bocal teria que ser modificado ou o modelo do botijão atual ser trocado", informou a autarquia em nota ao Valor. O órgão disse ainda que "também se preocupa com a complexidade do controle metrológico legal da quantidade do GLP envasado".
O governo esclarece que não se trata de uma avaliação que o modelo atual não funciona e que a discussão, ainda em curso, é sobre formatos que possam conviver no mercado. "O que tem mapeado pela ANP é que o modelo atual é eficiente. O que queremos é a abertura de novos modelos de negócios, uma pluralidade de arranjos, e que o consumidor escolha o formato que prefere para acessar o produto", diz Andreeto.