Folha de São Paulo
São cerca de 350 carretas com lixo entrando e 31 caminhões saindo carregados com cilindros de biometano, produto idêntico ao gás natural extraído dos poços de petróleo, com a diferença que emite uma fração dos gases de feito estufa de seu correlato de origem fóssil.
Assim é a rotina diária na área em Seropédica, no Rio de Janeiro, onde os 110 veículos que operam para a Ciclus Ambiental, da Simpar, realizam 350 viagens por dia para aterros sanitários do grupo, a partir dos quais a Gás Verde, do Grupo Urca, produz energia de resíduos.
A reciclagem energética, ou recuperação energética, como se chama essa atividade, é uma das modalidades de reaproveitamento de resíduos que mais avança no Brasil. Ela transforma aterros sanitários —destino final de quase 60% dos resíduos sólidos urbanos do país— em grandes complexos com captação de biogás e geração de energia.
Em Seropédica, a reciclagem energética ganhou uma escala particular. O aterro sanitário da Ciclus é o maior da América do Sul, com 3 milhões de m³ (metros cúbicos), o equivalente a mais de 250 campos de futebol. A unidade da Gás Verde é a maior produtora de biometano da América Latina.
O biometano é obtido a partir da purificação do biogás, que é emitido de material orgânico em decomposição, como lixo, restos de produtos agropecuários e até esgoto. Numa conta de padaria, cada 2 m³ de biogás produz 1 m³ de biometano. O processo é antigo. Os chineses tinham biodigestores para tirar gás de esterco na Idade Antiga.
Aterros sanitários que não fazem reciclagem energética são fontes emissoras de gás metano na atmosfera provenientes da decomposição livre do lixo. O metano, o segundo gás de efeito estufa mais importante depois do CO2, é muito mais potente que o CO2, apesar de sua vida útil ser mais curta. Estudos apontam que o metano é responsável por aproximadamente 30% do aquecimento global desde a Revolução Industrial.
No Brasil, o líder em potencial de extração de biogás e biometano é a agropecuária. No entanto, o aterro sanitário se mostrou a fonte mais rápida a ser explorada por estar próxima a centros urbanos, seus postos de gasolina e suas redes de abastecimento elétrico.
A oferta, porém, também é inferior ao potencial. Apenas 2.181 do total de 5.568 municípios do país se declararam predispostos a implantar um aterro sanitário no lugar dos tradicionais lixões, medida essencial para a gestão dos resíduos e o controle na emissão de gases. Persiste o uso do lixão, com seus problemas ambientais, sociais e de saúde pública.
No Brasil, o biometano ganhou força após o uso ter sido parametrizado e regulamentado, em 2016, pela ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis). O produto, que valia bem menos que o gás fóssil, hoje chega a valer 30% mais por causa da relação entre oferta e demanda.
“A energia é um produto nobre da reciclagem de material orgânico que a gente demorou muito tempo para entender o valor e viabilizar economicamente”, afirma Carlos Canejo, professor do mestrado profissional em Ciências do Meio Ambiente da Universidade Veiga de Almeida, no Rio, e consultor nas áreas ambiental e de gestão de resíduos.
“A gente começou a colher os primeiros frutos de uma gestão de resíduos mais assertiva e tecnológica só recentemente. Por outro aspecto, é como se a gente estivesse saindo agora da Idade Média, porque ainda precisamos convencer as pessoas a não jogar lixo em terreno baldio.”
A busca pelo biometano avança especialmente em dois segmentos empresariais, a produção industrial e a logística de transporte, que buscam descarbonizar as suas operações reduzindo o consumo ou mesmo abandonando o uso do gás de petróleo, carvão mineral e diesel, com redução nas emissões de gases de efeito estufa de no mínimo 80%, a depender da fonte substituída.
A Gás Verde opera 18 plantas de biogás e biometano no Brasil. Apenas de biometano, produz 160 mil m³ por dia. A empresa investe para ampliar a produção do combustível.
“Hoje temos dez térmicas de energia elétrica movidas a biogás em aterros que a gente está convertendo para biometano”, explica o empresário Marcel Jorand, CEO da Gás Verde e cofundador do Grupo Urca.
“Com elas, hoje a gente produz mais de 1 milhão de m³ de biogás por dia, que a gente converte em energia elétrica. Vamos passar a converter tudo em biometano, chegando a um volume de 600 mil m³ por dia já em 2026.”
A operação de Seropédica é um raio-X da engrenagem que permite economia circular voltada à geração de energia.
A Ciclus Rio tem a concessão para fazer a gestão dos resíduos sólidos da cidade do Rio de Janeiro e atende outros municípios, como Itaguaí, Mangaratiba, São João de Meriti, Piraí, Miguel Pereira, além de Seropédica e clientes privados.
A Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana) recolhe o lixo e entrega nas estações de transferência da Ciclus —cinco ao todo—, movimentando cerca de 10 mil toneladas de resíduos diariamente.
Nas estações, os resíduos são transferidos dos caminhões de coleta para as carretas. Cada carreta transporta a carga de quatro caminhões até o aterro de Seropédica, chamado pela empresa de CRT (Central de Tratamento de Resíduos).
O local foi preparado para funcionar como um aterro sanitário bioenergético, com camadas de proteção para deter a contaminação do solo e um sistema de drenagem com mais de 350 poços interligados por tubulações para captar, por hora, 24 mil m³ de biogás.
Diariamente, são produzidos 576 mil m³ de biogás, cerca de 10% do total nacional, o que evita o lançamento na atmosfera de 20 mil m³ de gás metano, o equivalente a emissão de 300 mil veículos leves, cerca de 5% da frota na cidade do Rio.
A Ciclus utiliza parte do biogás na geração de energia elétrica para se abastecer e também vender no mercado livre. A maior parcela, 67%, segue para a Gás Verde por meio de tubulações. Em sua planta, diariamente, a Gás Verde transforma esse biogás em 130 mil m³ de biometano. Na sequência, o produto é comprimido e injetado em cilindros para o transporte em carretas, também movidas a biometano.
O biometano da Gás Verde abastece 40 postos no Rio e é utilizado por empresas como a rede de supermercado Dia, a fabricante global de vidros Saint-Gobain, o grupo L’Oréal de produtos de beleza e a indústria de bebidas Ambev, que com ele transformou a unidade de Cachoeira de Macacu (RJ) na primeira cervejaria do Brasil movida 100% a biometano.
Segundo estimativa da ABiogás (Associação Brasileira do Biogás), se o Brasil utilizasse todo o seu potencial de produção, incluindo esgoto e agronegócio, além dos resíduos, seria capaz de produzir 6 milhões de m³ de biometano por dia e gerar 800 mil empregos.
Hoje, o país produz uma fração disso, 985 mil m³ por dia. Apenas seis plantas estão habilitadas pela ANP para a produção comercial. Outras 14 operam em regime de autoprodução. Há uma fila com 22 plantas aguardando a liberação da agência. Sondagem da entidade aponta que o setor se mobiliza para tirar do papel 90 aterros sanitários com produção de biogás até 2029.
Na avaliação de Renata Isfer, presidente-executiva da ABiogás, a demora faz parte do processo natural de aprendizado para lidar com um novo produto.
“O mercado foi estruturado para trabalhar com o gás natural de fonte fóssil. Tanto os empreendedores do setor quanto os técnicos da ANP estão num processo de aprendizagem para calibrar as regras.”