Folha de São Paulo
A AIE (Agência Internacional de Energia) apresentou dois relatórios durante as reuniões do G20 que propõem um sistema de certificação global para combustíveis sustentáveis, considerando tanto as emissões diretas de gases de efeito estufa como aquelas geradas pelo uso da terra.
A ideia é aplicar a cada combustível um selo de sustentabilidade em graus que variem de A a E, de forma semelhante ao selo de eficiência energética usado hoje em eletrodomésticos. Com isso, o mecanismo poderia ser facilmente assimilado pela sociedade —tanto por investidores, para decidir sobre a aplicação de recursos, como pela população em geral, ao abastecer veículos, por exemplo.
Os detalhes estão no texto Carbon Accounting for Sustainable e em sua versão ampliada, o Towards Common Criteria for Sustainable Fuels, apresentados pela agência nos eventos do dia.
O mecanismo proposto tem como objetivo unificar conceitos e facilitar o comércio de biocombustíveis em âmbito internacional. O organismo destaca o etanol, apontado como o biocombustível em uso comercial que mais rapidamente atende à demanda e reduz emissões.
A AIE também incentiva a adoção de diferentes opções sustentáveis existentes hoje, mesmo que não sejam perfeitas, e diz que as respectivas emissões podem ser ainda menores ao longo do tempo desde que os devidos investimentos sejam feitos.
Os estudos da AIE sobre o tema foram encomendados pelo governo brasileiro, que viu as conclusões como positivas para o mercado nacional. De acordo com representantes da gestão Lula (PT), a visão da agência desmonta a tese usada principalmente pela Europa de que os biocombustíveis não são tão benéficos para a descarbonização, e que alguns deles levariam ao desmatamento ou concorreriam com a produção de alimentos.
Para a AIE, embora a mudança no uso da terra possa ser importante, ela deve ser gerida por meio de políticas separadas —e não analisada junto com as emissões diretas. O objetivo é evitar colocar todo o ônus da transição sobre aqueles que estão investindo em tecnologias limpas.
“O entendimento da agência foi uma grande vitória”, destacou Heloisa Esteves, diretora de Estudos, do Petróleo, Gás e Biocombustíveis da EPE (Empresa de Pesquisa Energética), estatal ligada ao MME (Ministério de Minas e Energia).
Esteves reforça que a Análise de Conjuntura dos Biocombustíveis, divulgada pela EPE em agosto dentro dos princípios do “poupa-terra” (que têm como objetivo maximizar o uso da terra já explorada), mostra que existe no Brasil um alto potencial de expansão da produção de biocombustíveis sem risco de concorrência com a produção de alimentos.
Segundo o texto, a produção adicional de biocombustíveis no país, apenas com a recuperação de pastagens degradadas agricultáveis e potencialmente mecanizáveis no Brasil, foi estimada em cerca de 8 bilhões de litros (o equivalente a quase um quarto da produção atual).
O setor empresarial concorda com a percepção de que o tema, com forte conteúdo político, está avançando pela ótica técnica por meio de um organismo internacional relevante.
“A agência legitima que o Brasil tem uma solução replicável no etanol, e entendo que ela é uma aliada ao trazer elementos técnicos para uma discussão que tem muito de geopolítica e segurança energética para os países”, afirmou à Folha André Valente, diretor de sustentabilidade e ESG da Raízen, que tem acompanhado as discussões
Hoje, as discordâncias existentes já começam na nomenclatura —com grandes variações sobre o que é exatamente um combustível sustentável. Termos como “verde”, “azul” ou “avançado” são usados ao redor do mundo, mas sem um consenso internacional sobre seus respectivos significados e sem dados precisos de emissões.
Entre as padronizações que o organismo defende, está a de que o cálculo das emissões não apenas considere a produção do combustível —mas também o transporte e a distribuição, já que essas etapas podem contribuir significativamente para mudar os números (como no caso do hidrogênio).
Além disso, sugere que o limite de emissões para que um combustível seja considerado sustentável fique em um nível intermediário. Para a agência, esse sarrafo deve ser baixo o suficiente para promover metas ambiciosas —mas nem tanto que inviabilize iniciativas, especialmente em países que não podem arcar com combustíveis de emissão quase nula.
Paolo Frankl, chefe de Energia Renovável da AIE que apresentou o relatório no G20, diz que definir limites excessivamente ambiciosos desde o início pode limitar a diversidade tecnológica, aumentar custos da transição e até retardar a redução das emissões.
O principal exemplo é o hidrogênio verde, uma tecnologia limpa —mas ainda muito cara. “A curto prazo, o maior problema que o hidrogênio enfrenta hoje é criar demanda, criar economias de escala e diminuir com o custo da eletrólise. Portanto, os critérios devem ser aplicados com cuidado e ponderadamente ao longo do tempo”, afirma.
Por isso, ele defende o uso de biocombustíveis mesmo que eles ainda sejam emissores de algum CO2. “A legislação deve permitir o uso residual do CO2 fóssil? No longo prazo, não, porque isso não se encaixaria mais em uma situação de emissão zero. Mas no curto prazo, durante a transição, sim”, afirmou.
A agência sugere um conjunto de cinco níveis a serem aplicados aos diferentes biocombustíveis usando como base as emissões de gás carbônico, variando de zero no nível A (o mais limpo) a um valor máximo de 50 gramas de CO2 equivalente por megajoule (gCO2-eq/MJ) no nível E.
Frankl, da IEA, afirma esperar que o G20 e a COP30 (Conferência das Nações Unidas para o Clima) continuem colocando os biocombustíveis como prioridade nos próximos anos. Ele sugere que o sistema de rotulagem seja desenvolvido e testado para se construir um sistema global do gênero até 2030 ou 2035.