EPBR
UM NOVO CAPÍTULO DA ABERTURA
Com um portfólio de suprimento cada vez mais diversificado e flexível, e por consequência mais complexo de gerir, as distribuidoras estaduais estão começando a testar operações de revenda de gás natural para outros agentes.
Por ora, são operações pontuais que visam a repassar excedentes (para reduzir riscos de penalidades com o transportador, por exemplo) ou arbitrar em busca de preços mais vantajosos pela molécula.
De acordo com dados da ANP, são ao menos dois casos concretos este ano: a Cegás comercializou com a Origem Energia; e a MTGás vendeu para a Edge excedentes de gás importado da Bolívia.
Enquanto isso, mais distribuidoras vêm se habilitando para comercializar gás. A ANP já autorizou em 2024 a Copergás (PE), PBGás (PB) e, mais recentemente, a Sulgás (RS) a exercerem a atividade.
O trio se junta à MTGás (MT) e Cegás (CE), além da Algás (AL), Bahiagás (BA), Compagas (PR), Sergas (SE) e SCGás (SC) – que já possuíam o aval.
A movimentação, ainda incipiente e marginal, abre o debate sobre que tratamento regulatório dar à receita obtida com esse tipo de operação quando ela começar a escalar. As regulações estaduais têm hoje lacunas que ainda serão preenchidas para comportar a novidade.
Um dos nossos esforços na gas week é, justamente, antecipar debates que o desenrolar da abertura do mercado impõe. E aí está uma discussão que ainda terá de ser amadurecida. Vamos a ela.
O QUE FAZER COM AS RECEITAS DE COMERCIALIZAÇÃO?
É tudo muito novo. O assunto começou, recentemente, a ser discutido dentro dos fóruns técnicos da Associação Brasileira de Agências Reguladoras (Abar), segundo fontes.
É um debate mais amplo que passa também pela necessidade ou não de separação das atividades de distribuição e comercialização nas regulações.
Cada estado tem liberadade para seguir seu próprio caminho. Em geral, os custos com comercialização costumam ser incorporados nas tarifas pelo uso do sistema (TUSDs).
Na regulação de alguns estados, como São Paulo e Paraná, há um detalhamento maior do que pode ser reconhecido como encargos de comercialização (custos associados à gestão dos contratos de suprimento e transporte).
Entram nessa rubrica, por exemplo, despesas financeiras, de recursos humanos, contabilidade, administrativas, operação e manutenção de ativos utilizados para esse fim; custos de odoração; medição; atendimentos de emergência; suspensão e religação dos serviços etc.
Em outros estados, como no Ceará, o contrato de concessão é mais vago: as “despesas com comercialização e publicidade” ajudam a compor os custos operacionais – e, por extensão, a margem bruta das concessionárias.
Mas fato é que essas regulações foram desenhadas dentro de uma outra realidade de mercado, para cobrir os custos com a compra do gás – e não para incorporar as eventuais receitas com a venda de gás pelas distribuidoras.
Em tese, pelo racional, uma receita adicional com a venda de gás ajudaria a reduzir o custo de comercialização, com impacto favorável na modicidade tarifária.
“Mas é uma situação nova para qual não tem regulação. Por princípio, as distribuidoras são remuneradas pela margem, não com preço do gás. Essas receitas vão ter que começar a ser monitoradas, com contabilidade. O caminho pode vir a ser uma conta gráfica”, comenta o ex-diretor da Arsesp e consultor da Zenergás, Zevi Kann.
Um mecanismo de transparência que hoje sequer existe em todos os estados.
CONSUMIDORES PREGAM SEPARAÇÃO
Para o diretor de gás natural da Abrace, Adrianno Lorenzon, será preciso debater o limite de até onde a distribuidora pode ir para atender o mercado cativo sem virar um trader.
“Que tipo de risco ele pode assumir para atender mercado consumidor [com exposição a contratos spot, por exemplo]. Porque esses riscos vão ter que ser regulados e isso é um esforço regulatório enorme”, disse.
Um debate subjacente a esse, segundo ele, é a questão da desverticalização. A separação das atividades de distribuição e comercialização é uma bandeira do Relivre – o Ranking do Mercado Livre de Gás, que reúne a visão de produtores, comercializadores (IBP e Abpip) e consumidores (Abrace) sobre as condições de abertura do mercado em cada estado.
O Relivre defende que a distribuidora (ou o grupo econômico por ela integrado), para exercer a atividade de comercialização, deveria constituir pessoa jurídica distinta e com fins específicos à comercialização, com independência técnica, financeira, operacional e de gestão contábil.
A comercialização é, em algumas legislações estaduais, uma das competências atribuídas à distribuidora. È uma atividade inerente à gestão de portfólio de suprimento da concessão.
Na visão de comercializadores e consumidores, porém, há uma preocupação de que as distribuidoras avancem para a constituição de traders que possam, em alguma medida, inibir a concorrência na comercialização nos estados — e, assim, o próprio desenvolvimento do mercado livre.
AINDA FALTA LIQUIDEZ PARA MAIS
As operações de revenda de gás pelas distribuidoras ainda são pontuais. A percepção entre agentes do mercado é que, hoje, o mercado brasileiro de gás ainda carece de liquidez para que essas transações consolidem um mercado secundário, de fato.
Falta mais oferta de gás de terceiros e uma plataforma de comercialização – o tal do “hub”, o ponto virtual de negociação que permite padronizar operações e criar um referencial de preço para estas trocas. Era um conceito presente nas discussões do Novo Mercado de Gás, mas que ainda não avançou.
Na falta de um hub, oportunidades de comercialização de volumes a curto prazo têm acontecido nas plataformas de balanceamento das transportadoras – espaço onde são fechados contratos flexíveis de curto prazo, para garantir o equilíbrio do sistema.
Na TAG, que reúne uma diversidade maior de usuários, por exemplo, em 2023 cerca de 10% das propostas de compra e venda apresentadas na plataforma vieram de distribuidoras.
Funciona assim: no modelo de entrada e saída, os usuários da rede de transporte devem manter constantemente suas injeções e retiradas equilibradas. No dia a dia, porém, eventuais diferenças entre os volumes injetados e retirados pelos carregadores podem comprometer o sistema.
Cabe ao transportador, nesses casos, garantir o balanceamento, por meio de operações de compra e venda de molécula, em contratos spot. A TAG entende que esse mecanismo contribui para dar um pouco mais de liquidez aos agentes e para a revelação de preços no mercado de gás.
O CASO CEGÁS
A distribuidora cearense vem se aproximando de agentes do mercado em busca de opções de compra e venda no mercado de curto prazo. Faz parte da estratégia de capturar preços melhores.
A Cegás tem acordos MSA com empresas como 3R, Eneva, Origem, PetroReconcavo e Shell. Esses contratos (do inglês Master Sale Agreement) definem as condições gerais de um contrato flexível e permitem aproveitar, de forma mais célere, oportunidades de mercado. Algumas delas – com a Origem, por exemplo – já foram efetivadas em operações pontuais este ano.
A concessionária também tem feito negócio com outras distribuidoras estaduais, por meio de trocas de titularidade de molécula dentro da malha de gasodutos de transporte da TAG. No fim de 2023, efetuou a primeira transação do tipo entre distribuidoras, com a Sergas.
A comercialização de gás é uma competência legal da Cegás, prevista na lei de criação da empresa. A empresa argumenta que o objetivo principal da atividade não é gerar receitas adicionais – e sim mitigar penalidades e aproveitar oportunidades de preços mais baixos no mercado de curto prazo, para efeitos de modicidade tarifária.
Um exemplo para ajudar a ilustrar: a companhia tem contratos de suprimento nas modalidades firme e PUT – contrato flexível que dá ao produtor uma opção de venda a um determinado preço, geralmente com descontos, e, em contrapartida, o cliente tem o dever de comprar.
Eventualmente, a companhia pode ter acesso a um gás de oportunidade mais barato que os volumes contratados. Então a distribuidora pode tomar esse gás flexível mais competitivo para si e revender o gás PUT para terceiros.
O tratamento regulatório: A Arce, a agência reguladora estadual, na falta de regras claras sobre o que fazer com as receitas de comercialização, preferiu, num primeiro momento, não intervir diretamente.
A criação de uma conta gráfica para acompanhar as flutuações às vezes diárias de preço de aquisição e venda de gás pela distribuidora local foi considerada pela agência uma opção com elevado custo regulatório para a realidade do órgão estadual.
A Arce preferiu, então, segundo uma fonte, tratar o assunto via regulação da margem da Cegás. A agência entende que os ganhos da concessionária com a venda de gás não têm sido suficientes para fazer a margem da concessionária ultrapassar os limites autorizados em revisão tarifária – feita anualmente, por força do contrato de concessão.
Isso, aliás, dificulta qualquer debate sobre o tratamento regulatório que se queira dar às receitas da comercialização que não passe pela rediscussão do contrato, onde estão as regras de composição das tarifas.
Nas próximas semanas, aliás, deve começar o processo da nova revisão da margem da distribuidora. É o momento em que a agência se debruça sobre a numeralha (investimentos, despesas etc) para definir a margem da concessionária. A expectativa é que o impacto da comercialização de gás da Cegás seja, então, melhor avaliado.
Por ora, a Arce entende também que a comercialização tem ocorrido para fins de otimização do fluxo de suprimento e à montante da área de concessão (sem prejuízo, portanto, para comercializadores concorrentes).