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Valor Econômico

Modelo a etanol ajuda montadora na descarbonização e atende desejo do consumidor

Quando era estudante, o presidente da Stellantis na América do Sul, Emanuele Cappellano, não podia usar carro. Por um motivo muito simples. Ele morava em Veneza, cidade onde todo o transporte é feito em embarcações. Mas o automóvel passou a ser fundamental em sua vida em 2002, quando começou a trabalhar na Fiat, em Turim. Desde então, a carreira tomou um rumo que o tornou especialista em gestão de crises e, principalmente, projetos de integração entre montadoras. Começou quando ele ainda morava na Itália e a Fiat se juntou à Chrysler. Posteriormente, já no Brasil, ele liderou o projeto de integração de Fiat e Chrysler com Peugeot e Citroën na América Latina. Dessa união surgiu a Stellantis.

Passada a onda de crises profundas e fusões nas montadoras, o desafio, agora, é convencer o mundo de que o setor é bem-intencionado quando se apresenta como parte do esforço para reduzir os gases de efeito estufa no planeta. “Querendo ou não, a indústria automobilística continua poluindo; somos parte do processo de descarbonização”, destaca.

No Brasil, a Stellantis vai investir para desenvolver e produzir veículos híbridos movidos a etanol. E promete apresentar seu primeiro modelo com essas características ainda neste semestre. “Não podemos pensar em tecnologias hiper caras”, afirma Cappellano, ao referir-se aos carros 100% elétricos.

Ele segue o raciocínio do presidente mundial da companhia. Carlos Tavares tem reiterado que se vender apenas carros 100% elétricos a indústria automobilística perderá a maior parte da sua clientela, formada pela classe média. Segundo ele, produzir um carro totalmente elétrico custa entre 30% e 40% mais.

Cappellano praticamente não morou na cidade onde nasceu – Rieti, a quase 60 quilômetros de Roma. Veneza, onde viveu dos 15 anos até a conclusão da faculdade de Economia, foi uma das várias cidades por onde a família passou na época em que seu pai era oficial da Marinha. “A vida em Veneza tem um ritmo diferente”, diz. Tudo mudou quando o jovem economista decidiu enviar um currículo à Fiat, sonho de emprego de italianos na época.

No primeiro dia na Fiat, Cappellano conheceu a esposa. Assim como ele, Valentina, uma engenheira, havia sido selecionada no programa de estágio. Ela também continua na Fiat, hoje no Brasil. A primeira troca de olhares, se Cappellano bem se recorda, foi na sala de espera do exame médico para a admissão na empresa. Dois anos depois, eles se casaram e tiveram um casal de filhos, Andrea, hoje com 12 anos, e Lorenzo, com 10. Ambos nasceram na Itália, mas, segundo o pai, hoje são “mineiros na cultura”.

Admitido para trabalhar na área financeira, Cappellano logo percebeu que a Fiat estava à beira da falência. Foi quando o grupo contratou para o cargo de CEO, Sergio Marchionne, morto em 2018. Trabalhar com Marchionne – “um cara brilhante”, como diz o executivo, proporcionou a Cappellano a primeira experiência sobre fusões. Em sua gestão, a Fiat se junto à americana Chrysler, o que deu uma guinada em ambas. “Esse momento de crise foi um aprendizado”, lembra.

A segunda experiência com crises aconteceu em 2014, quando o executivo foi escalado para vir ao Brasil para trabalhar na área financeira. Depois de um ano de recordes, as vendas de veículos no Brasil haviam despencado. Coube a Cappellano dar andamento ao projeto da fábrica em Goiana, Pernambuco. “Tínhamos um investimento grande num mercado difícil.”

Três anos depois, ele assumiu o comando da área financeira e, posteriormente, a liderança, na região, da integração entre Fiat Chrysler e Peugeot Citroën, preparando as empresas para o nascimento da Stellantis. “Sabíamos que não adiantava criar uma indústria no papel; era necessário mudar a cultura de governança”, diz.

Em 2021, Cappellano decidiu fazer uma mudança radical na carreira e na vida. Aceitou ser CEO para a América do Norte do grupo Marcolin, uma fabricante italiana de óculos, mais conhecida por grifes como Max Mara, Tom Ford, Guess. A família seguiu, então, para Nova York. “Eu queria um novo desafio, sair da zona de conforto. Seria, também, uma experiência de vida para os meninos”, afirma.

De fato, foi. Mas a experiência americana durou só dois anos. Cappellano sentia falta do que chama de “complexidade” de um setor que oferece indústria, comércio, pesquisa, tudo ao mesmo tempo, e que, para ele, é uma característica inerente da indústria automobilística. E foi assim que ele regressou ao Brasil para assumir o comando da Stellantis na América do Sul, onde a companhia tem 30 mil funcionários e vendeu 404 mil veículos apenas no primeiro semestre. As marcas do grupo somam participação de 22,7% do mercado da região (29,3% no Brasil). A operação sul-americana responde por 15% do volume de vendas global.

A mais aprazível tarefa que o executivo de 48 anos recebeu desde que assumiu o comando da operação sul-americana, em novembro de 2023, aconteceu em março. Cappellano acompanhou Tavares numa viagem a Brasília. Na sede do governo, a dupla revelou um novo investimento: R$ 30 bilhões até 2030. Trata-se do maior ciclo anunciado por uma única montadora no país e também o valor mais alto da recente onda de aportes na indústria automobilística. Leia, abaixo, o que Cappellano disse sobre conjuntura na entrevista ao Valor:

Valor: O setor automotivo costuma falar bastante sobre os planos para reduzir emissões. A sociedade vê essa indústria como participante desse processo?

Emanuele Cappellano: Precisamos pensar na mobilidade do futuro porque isso impacta na vida das pessoas. Querendo ou não, a indústria automobilística continua poluindo. Somos parte do processo. Os carros emitem menos hoje do que há dez anos e a eletrificação trará uma grande contribuição. A Stellantis se comprometeu a, até 2030, reduzir as emissões de CO2 em toda a cadeia, do processo produtivo à reciclagem. E atingir a neutralidade até 2038.

Valor: A Stellantis optou pela produção de modelos híbridos a etanol no Brasil e promete lançar o primeiro deles ainda neste semestre. O senhor acredita que o carro híbrido será uma tendência no mercado brasileiro?

Cappellano: A escolha da hibridização responde a uma demanda regulatória do Mover (programa federal de incentivos fiscais em troca de redução de poluentes e investimento em pesquisa). Mas não é a única razão. Enxergamos um mercado que demanda os híbridos. Existe um aumento da consciência do consumidor a respeito disso. Isso aparece nas nossas pesquisas. E isso requer investimentos pesados.

Valor: Parte da indústria tem defendido o aumento do Imposto de Importação em carros elétricos e híbridos. Qual é a sua avaliação a respeito?

Cappellano: A solução tem que vir do Brasil. É fundamental adaptar-se à realidade local. Os biocombustíveis são uma solução que tem muito a ver com o Brasil. Não podemos pensar em tecnologias hiper caras. E essa é uma questão de competição igual entre as montadoras. A Europa já confirmou a existência de dumping em relação aos carros produzidos na China. Aqui precisamos ter em vista os investimentos em curso e o emprego.

Querendo ou não, a indústria automobilística continua poluindo”

  • E. Cappellano

Valor: Isso tende a regionalizar a atividade desse setor?

Cappellano: Essa região está se tornando cada vez mais relevante. Nossa engenharia trabalha em projetos futuros globais. Temos 4 mil engenheiros no país e uma estrutura de testes em laboratório. Mas eu acredito que hoje temos um nível de industrialização mais local do que no passado. Trabalhamos no desenvolvimento da digitalização e, assim, reduzimos a necessidade de importação de software. Vamos projetar carros brasileiros para brasileiros. O híbrido exclusivo para a América Latina foi desenvolvido pela nossa engenharia.

Valor: A conjuntura macroeconômica do país estava melhor no início do ano, quando a Stellantis anunciou o novo investimento. O cenário de hoje altera os planos?

Cappellano: Os ciclos de volatilidade sempre existiram na América Latina. Ao mesmo tempo, temos o programa Mover. A volatilidade existe. Mas os fundamentos são fortes.

Valor: A Stellantis sempre defendeu a extensão dos incentivos fiscais para o setor no Nordeste até 2032, aprovada no Congresso. Ao mesmo tempo, conseguiu aumentar o número de fornecedores no Nordeste para quase 50. Qual é a importância dessa prorrogação do benefício?

Cappellano: Estamos trabalhando para chegar a 100 fornecedores no entorno da fábrica em Goiana. Queremos ganhar competitividade no Nordeste porque o benefício fiscal vai diminuir ao mesmo tempo em que a concorrência vai aumentar. Se não fizermos assim não vamos ganhar o jogo.

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