O Cade, a Petrobras e a revisão dos acordos de 2019

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O Brasil precisa de instituições que garantam que o passado não seja incerto e de um Cade que defenda os consumidores brasileiros

Valor Econômico

Por Cristiane Schmidt e César Mattos e Lucia Salgado

Desde 2016, a Petrobras respondia a processos no Cade de acusações por condutas anticompetitivas no refino de petróleo e no transporte e comercialização de gás natural. A empresa era acusada de manipular preços e aumentar os custos dos rivais, dentre outras práticas. Para superar esses supostos abusos, a Petrobras propôs ao Cade dois Termos de Compromisso de Cessação de prática (TCCs), um para cada mercado, em junho de 2019. Caso as condutas não existissem, nem a Petrobras sugeriria acordos, nem o Cade arquivaria os processos aceitando os acordos. Estranho que tais TCCs tenham sido revistos em maio de 2024, na direção pró-monopólio, indo contra as experiências exitosas internacionais e à própria razão de existência do Cade, mas ao encontro dos anseios da Petrobras. A quem a mudança de 180º prejudicou?
Nos dois TCCs de 2019 a ideia era reduzir a verticalização da empresa. Na ocasião, o Cade indicava, dentre outras assertivas, que a Petrobras era monopolista no refino e monopsonista na compra do insumo dos principais produtos do refino, o que era maléfico para o consumidor. O Cade, à época, teve o cuidado de seguir as diretrizes das Resoluções do Conselho Nacional de Política Energética.
Em um dos TCCs, a Petrobras venderia 51% da sua capacidade de refino no país1, uma desverticalização que representaria uma profunda mudança estrutural. No outro, a Petrobras alienaria a sua participação nas transportadoras de gás2 TBG, NTS e TAG, e venderia suas participações nas distribuidoras estaduais de gás natural. Nessas últimas medidas, a Petrobras alienou 51% da Gaspetro para a Compass, em 2022. O Cade também impôs compromissos comportamentais, reforçando a lei do gás (14.134/21).
A competição traz mais opções, menores preços e melhor qualidade. Em infraestrutura, entretanto, a concorrência não emerge automaticamente, além de exigir cuidados. Primeiro, porque são mercados que requerem investimentos elevados, com longo período de maturação, em que a previsibilidade e a segurança jurídica são essenciais. Segundo, porque são monopólios naturais. Não à toa, cabe à ANP adotar medidas para evitar condutas anticompetitivas.
ANP e Cade são órgãos autônomos, que devem assegurar compromissos críveis e estáveis. Suas decisões, assim, devem deixar à parte as preferências de governos, ter o foco no longo prazo e concretizar políticas de Estado.
Em 22 de maio, porém, o Cade em menos de um mês voltou atrás nos compromissos estruturais de 2019, aceitando o pedido de revisão pela Petrobras, não tendo objeção da ANP. Essa guinada não era esperada. Primeiro porque se tratava de acordos pró-mercado, frutos de votos fundamentados do Cade na ocasião. Segundo porque os incentivos dos investidores seriam alterados. Mesmo diante da preferência do atual governo por maior intervenção, da volta do discurso a “Petrobras é nossa” e da escolha de uma nova política de preços não atrelada 100% à paridade internacional, a surpresa foi grande, criticada em artigos, como: “Cadê o Cade que estava aqui?” e A desmoralização do “Cade”.
De acordo com a doutrina antitruste, compromissos estruturais são remédios mais efetivos para corrigir problemas concorrenciais do que os comportamentais, os quais têm usualmente baixa capacidade de monitoramento e de execução. Por isso são considerados auxiliares aos estruturais, não substitutos. No caso, a revisão dos acordos implicou a preservação do monopólio, da verticalização e da nova política de preços.
Compromissos comportamentais em setores verticalizados obrigam a que o monopolista verticalizado forneça o produto ou adquira o insumo de terceiros de forma não discriminatória. Essa empresa, contudo, pode dificultar a constatação pelo Cade de eventuais barreiras criadas aos concorrentes. É um jogo, com assimetria de informação, em que o Cade sabe menos e quem perde é o consumidor, que deixa de ter mais escolhas e combustível mais barato.
Ainda que a recente decisão pudesse ter sido meritória (achamos que não foi), o momento, a rapidez e a forma foram inoportunas. No novo entendimento, o monopolista verticalizado se livrou dos processos de 2016 e passou a ter somente obrigações comportamentais, que nem mesmo exigem que a política de preços seja guiada pela paridade internacional, especialmente para ela própria. Como agora há refinarias privadas desverticalizadas, foi criado incentivo para a empresa cometer mais um ilícito antitruste: o aumento do custo destas rivais.
Se fosse para fazer ajustes aos TCCs de 2019 (já que são acordos), portanto, o Cade deveria ter revisto no sentido de exigir a desverticalização de 100% (e não da venda de 50%) da capacidade doméstica de refino, pois a nova política de preços fere princípios basilares de mercado, que deveriam ser defendidos por qualquer órgão antitruste. Agora, como atrair novos investidores? Aliás, como preservar os atuais? O Cade conseguirá monitorar o novo acordo?
A taxa de investimento média do Brasil nos últimos 20 anos é de 17,5% do PIB, sendo o último dado de 16,5%, enquanto a taxa de países de renda média é de 25%. Toda a sinalização positiva conferida em 2019, com potencial impacto positivo para o setor e sobre a produtividade e o crescimento do país, foi perdida.
Os consumidores (e não as empresas), com seus direitos difusos, contam com órgãos de Estado para os defenderem, como o Cade, à luz da lei 12.529/11. Além disso, órgãos antitruste precisam dar segurança jurídica e previsibilidade aos investidores, serem implacáveis com os monopólios e independentes de governos. A sinalização da revisão, assim, não foi positiva.
Seria oportuno, destarte, que a revisão dos TCCs fosse revista ou que essa recente revisão fosse interpretada como fato novo e os processos de 2019 fossem reabertos. Pouco provável que medidas comportamentais cessem a ameaça de condutas anticompetitivas. Pelo contrário, a tensão deve persistir, constituindo um retrocesso para o país. O Brasilprecisa de instituições que garantam que o passado não seja incerto e de um Cade que defenda os consumidores brasileiros.

  1. As refinarias vendidas foram 3: RLAM, REMAN e LUBNOR. Refinarias à venda: Abreu e Lima (Rnest/PE); Landulpho Alves (Rlam/BA); Presidente Getúlio Vargas (REPAR/PR); Alberto Pasqualini (Repar/RS); Gabriel Passos (Regap/MG); Isaac Sabbá (Reman/AM); Lubrif. e Derivados de Petróleo do Nordeste (Lubnor/CE); e Unidade de Industrialização do Xisto (Six/PR).
  2. TAG (Transportadora Associada de Gás): em 04/19, venda de 90%. NTS (Nova Transportadora do Sudeste): venda de 90% em 2017 e 10%, em 2020; TBG (Transportadora Brasileira Gasoduto Bolívia-Brasil): Petrobras anunciou a venda de 51% em 2022, suspensa pelo atual governo.
    Cristiane Schmidt, César Mattos e Lucia Helena Salgado são doutores em Economia e ex-conselheiros do Cade.

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