Valor Econômico
Os fabricantes de carros têm metas globais de descarbonização muito claras. A maioria já tem a data que deixará de produzir automóveis a combustão, e a eletrificação dos automóveis torna-se cada vez mais comum em diversas partes do mundo. No Brasil, no entanto, esse tema continua obscuro e, todas as vezes que os executivos se referem ao assunto, falta clareza nos detalhes e nos prazos.
Das 13 montadoras de carros com fábricas no Brasil, duas – Toyota e CAOA Chery – já produzem híbridos localmente. Na CAOA Chery, uma das menores no país, a decisão é bem recente. Outras duas, as maiores do setor – Volkswagen e Stellantis – anunciaram a intenção de produzir híbridos a etanol no país. Mas não revelaram datas.
Já a General Motors é totalmente contra híbridos, mas não revela planos de descarbonização na produção local de veículos, que, no seu entendimento, deveria seguir a tendência dos carros 100% elétricos. Hoje todos os puramente elétricos vendidos no Brasil são importados.
Nas demais montadoras, a questão está ainda menos resolvida. O que prevalece, na maioria, é o discurso em torno das metas globais, o que dificulta prever o que vai acontecer no Brasil. Em outras palavras, os dirigentes das montadoras evitam a pergunta óbvia: até quando vão resistir, no Brasil, produzindo apenas carros a combustão?
Ninguém põe em dúvida a capacidade, tanto do híbrido, como do elétrico, de atrair o interesse do consumidor. Mas como os preços desses veículos ainda são elevados para o padrão brasileiro, as empresas que mais exploram esse mercado são as que só vendem modelos importados.
Marcas de luxo, como Porsche e Volvo, entraram firme no segmento de híbridos, híbridos “plug-in” (que também são carregados na tomada) e elétricos. E oferecem a clientes abastados os mais recentes lançamentos da Europa. Nessa faixa, principalmente os 100% elétricos, chegam a preços a partir dos R$ 300 mil. CAOA Chery e Renault têm elétricos compactos mais em conta, a partir de R$ 145 mil.
Embora híbrido e elétrico convivam em harmonia no mercado brasileiro, nos bastidores do setor surgiu uma espécie de briga entre os executivos que são a favor de um e os que são favoráveis ao outro. Os que defendem a produção de híbridos no Brasil o apontam como a melhor forma de o país passar por uma fase intermediária, sem solavancos, antes de entrar na eletrificação pura.
Argumentam, ainda, que essa é a única maneira de salvar o parque industrial que montadoras e autopeças ergueram no país ao longo dos últimos 60 anos, além dos empregos no setor. O país já conta com a produção, embora tímida, de híbridos movidos a etanol — o veículo conta com dois motores, sendo um a combustão que ajuda a alimentar o elétrico.
Mais do que isso, os entusiastas destacam que, com esse tipo de veículo, nosso etanol poderia ganhar a uma posição de destaque no mapa global da descarbonização.
Na Stellantis – a supermontadora, que desde o início de 2021 juntou Fiat, Chrysler, Peugeot e Citroën -, equipes de engenharia e de desenvolvimento de produtos em todo o mundo têm trabalhado em busca de soluções para atingir a meta fixada pela companhia de reduzir a emissão de CO2 em 50% até 2030. Segundo revelou recentemente Antonio Filosa, presidente da empresa na América Latina, coube à equipe brasileira a missão de desenvolver o híbrido a etanol. “Somos, no mundo, os mais capazes para isso”, disse.
Do lado oposto, o presidente da General Motors na América do Sul, Santiago Chamorro, é um dos maiores defensores dos 100% elétricos. Nesse tipo de carro, feito com muito menos peças do que um a combustão, as baterias são carregadas em tomadas.
Para Chamorro, o Brasil deveria seguir a tendência dos países desenvolvidos. “As outras tecnologias são passageiras”, disse em recente entrevista ao Valor. Para ele, o Brasil poderá produzir carros elétricos quando o preço das baterias for mais acessível. Até lá a indústria continuaria a fabricar modelos a combustão mais econômicos. Essa decisão já foi tomada pela GM.
Algumas marcas, principalmente as de luxo, têm investido na instalação de pontos de recarga de elétricos em centros urbanos e algumas rodovias brasileiras. Enquanto isso, no mundo, avança o desenvolvimento de veículos movidos a célula de hidrogênio, uma tecnologia por meio da qual a energia elétrica é gerada no próprio veículo, sem a necessidade de carregamento em tomadas.
O debate híbrido versus elétrico também envolve discussões sobre qual dos dois oferece a maior vantagem em termos de emissões de poluentes. Os defensores do híbrido a etanol sustentam que a medição tem que ser feita pelo sistema chamado “do poço à roda”. Ou seja, o cálculo tem de incluir a pegada de carbono desde a produção do combustível (a plantação de cana de açúcar no caso do etanol), refino e transporte até a emissão no escapamento do veículo.
Esse, no entanto, será um assunto para o próximo governo. O consultor Cássio Pagliarini, da Bright Consulting, lembra que a atual legislação brasileira de emissões leva em conta apenas os gases que saem do escapamento do veículo.
Mas a partir do próximo ano, o programa automotivo Rota 2030 estabelecerá a necessidade uma nova etapa de medições, tanto de segurança veicular como de emissões. Isso pode favorecer os que defendem o modelo “do poço à roda”. “É preciso medir também o que provoca o efeito estufa, o aquecimento global”, destaca Pagliarini.
As montadoras que pretendem desenvolver carros híbridos movidos a etanol têm levado a discussão à equipe técnica da Secretaria de Desenvolvimento da Indústria, que já acenou positivamente nesse sentido.
Seja qual for a decisão, o próximo governo terá que definitivamente entrar nessa discussão, já que em todos os países que fizeram suas opções, a mudança de matriz energética nos veículos teve um direcionamento do poder público.