Folha de S. Paulo
A lei que desonera tributos federais sobre diesel, biodiesel, gás de cozinha e querosene de aviação contém um risco para os cofres públicos ainda não calculado pelo governo e que deve fazer a perda de arrecadação superar os R$ 16,6 bilhões divulgados pelo Ministério da Economia.
A redação da Lei Complementar 192, sancionada sem vetos pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), concede às empresas que compram combustíveis para seu próprio uso créditos tributários para abater valores de outros impostos devidos à Receita Federal, mesmo que não paguem nada de PIS e Cofins nessas operações devido à desoneração.
Ou seja, o texto não apenas zera PIS e Cofins sobre combustíveis como também vai gerar um crédito tributário para quem compra os produtos. Por isso, o impacto fiscal deve ser maior do que o anunciado.
A medida vai beneficiar uma gama ampla de empresas, como transportadoras, empresas de ônibus e de aviação. Uma parte desses segmentos compõe a base de apoio do presidente e também tem a simpatia de parlamentares no Congresso Nacional.
Segundo o divulgado pelo Ministério da Economia até o começo da semana, o corte de PIS e Cofins tira R$ 14,9 bilhões dos cofres públicos neste ano. Há ainda um impacto de R$ 1,66 bilhão que recairá sobre as contas de 2023, quando seriam recolhidos os tributos de fato gerados em dezembro deste ano.
Com isso, a renúncia total da medida é estimada em R$ 16,6 bilhões –mas o valor considera somente a redução a zero das alíquotas, sem levar em conta o uso dos créditos que serão gerados aos compradores.
A interpretação dos técnicos atualmente é que o mecanismo criado pela lei não faz sentido, já que o comprador final dos produtos não poderia ter direito a esses créditos –sobretudo se os tributos estão zerados.
O mecanismo, defendem, deveria ser restrito às empresas produtoras e revendedoras que fazem parte da cadeia dos combustíveis.
No caso dos produtores e revendedores, a legislação de PIS e Cofins autoriza a concessão de créditos mesmo com as alíquotas zeradas (devido a uma lei de 2004). Mas, para os compradores finais, o benefício é uma novidade.
A lei que desonerou o PIS/Cofins sobre os quatro combustíveis foi sancionada na noite de 11 de março por Bolsonaro, menos de 24 horas após a conclusão da votação do texto no Congresso Nacional. Após a aprovação no Senado, a proposta foi apreciada a jato na Câmara dos Deputados.
O presidente tinha pressa em sancionar a lei porque, no dia anterior, a Petrobras havia anunciado um mega-aumento nos preços de gasolina, diesel e gás de cozinha. O corte de tributos seria uma forma de amenizar o impacto nas bombas e atenuar as consequências políticas no ano em que Bolsonaro pretende buscar a reeleição.
Na sexta-feira em que a lei foi sancionada, técnicos da Economia e do Palácio do Planalto correram para produzir as notas técnicas e os documentos necessários à sanção. Bolsonaro poderia ter vetado a lei integralmente ou alguns de seus trechos, mas a decisão foi pela sanção integral.
A construção do artigo que abriu a brecha dos créditos tributários, porém, dificultava um veto parcial. O dispositivo incluiu na mesma frase a desoneração de PIS/Cofins e o benefício aos compradores finais, inviabilizando a separação dos efeitos.
O trecho visto como problemático pelo governo foi incorporado pelo relator, senador Jean Paul Prates (PT-RN), pela primeira vez no parecer proferido em 9 de março, véspera da votação no plenário do Senado.
Por meio de sua assessoria, o relator destacou que o texto é resultado da negociação com o Congresso e que foi o próprio governo que pediu a inclusão da desoneração na proposta.
“O Ministério da Economia teve diversas oportunidades de identificar problemas no texto, e vários outros trechos foram adequados em prol do acordo. O fato do trecho em questão não ter recebido veto sinaliza que o risco em questão não foi considerado relevante pelo próprio Poder Executivo”, disse Prates.
Questionados, tanto o Ministério da Economia quanto a Receita Federal não explicaram se o problema chegou a ser identificado antes da sanção e se houve recomendação de veto do artigo à Presidência da República.
Bianca Xavier, professora de Direito Tributário da FGV (Fundação Getulio Vargas), afirma que a lei vai gerar um impacto duplo para os cofres públicos ao zerar os tributos e ainda criar créditos.
“Por uma analogia, é como se o governo estivesse zerando o Imposto de Renda e permitindo que as pessoas gerassem créditos por despesas médicas”, afirma.
Segundo ela, o trecho vai gerar um impacto significativo pela amplitude de sua aplicação. Na prática, o benefício poderá ser usado por empresas que não operam no ramo de combustíveis –mas que usam o produto em suas atividades.
O crédito não pode ser aplicado a pessoas físicas, pois somente empresas pagam PIS e Cofins. Também não pode ser usado por empresas de menor porte, que operam pelos sistemas simplificados do lucro presumido ou do Simples (que não geram créditos). Com isso, seria usado só por empresas maiores, que operam pelo chamado lucro real.
“É uma modificação relevante. Para toda empresa do lucro real, isso vai gerar um crédito interessante”, afirma.
MINISTÉRIO DA ECONOMIA DISCUTE UMA MEDIDA PROVISÓRIA PARA ELIMINAR BRECHA
A brecha acendeu um alerta dentro da Economia, que discute a edição de uma MP (Medida Provisória), com vigência imediata, para corrigir o problema.
A equipe econômica pretende mudar o texto para definir um alcance mais restrito dos créditos, dizendo que eles são aplicados “às pessoas jurídicas produtoras ou revendedoras”. Dessa maneira, a nova redação seguiria o que já é estabelecido por uma lei anterior (a 11.033, de 2004).
Em tese, uma lei complementar não pode ser modificada por MP –mas a interpretação é que o instrumento pode ser usado neste caso porque as alíquotas e os créditos de PIS/Cofins têm status de lei ordinária.
Além do impacto para os cofres públicos, ainda não calculado pelos técnicos, a avaliação é que a redação atual gera risco de disputas entre União e contribuintes e até derrotas do governo na Justiça.
O problema detectado está no trecho que determina que, mesmo com PIS e Cofins zerados para esses combustíveis, fica “garantida às pessoas jurídicas da cadeia, incluído o adquirente final, a manutenção dos créditos vinculados”.
Integrantes da pasta consideram que a redação pode fazer contribuintes exigirem a vantagem –o que pode levar a uma série de brigas entre Receita Federal e pagadores de impostos e originar teses “criativas” na Justiça.
“A manutenção da atual redação do art. 9º poderá trazer insegurança jurídica a sua aplicação e levar à judicialização da questão do creditamento, baseado na interpretação de que o adquirente final do combustível, mesmo com as alíquotas da contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins reduzidas a zero, poderia tomar crédito dessa aquisição”, diz trecho de uma nota técnica elaborada pela Receita Federal.
“Esta hipótese não tem sentido, pois aquisições de produtos vendidos com alíquotas zero das contribuições não ensejam direito a créditos”, afirma o documento.
ENTENDA OS IMPACTOS
• Qual a perda de arrecadação calculada pelo Ministério da Economia com a lei sancionada?
O texto vai drenar R$ 14,9 bi da União neste ano. Há ainda um impacto de R$ 1,66 bi sobre as contas de 2023, quando seriam recolhidos os tributos gerados em dezembro. Com isso, a renúncia total foi estimada em R$ 16,6 bi
• Por que o impacto deve crescer?
Dados consideram somente a redução a zero das alíquotas de PIS e Cofins, sem levar em conta o uso dos créditos que serão gerados aos compradores de combustíveis –algo que foi inserido no texto às vésperas da votação no Congresso
• O que a lei passa a permitir em relação aos créditos?
Ela concede às empresas que compram combustíveis para seu próprio uso créditos tributários para abater valores de outros impostos devidos à Receita Federal, mesmo que não paguem nenhum centavo de PIS e Cofins nessas operações devido à desoneração. Na visão dos técnicos, esse mecanismo deveria ser restrito a produtores e revendedores de combustível –não a consumidores finais
• Quem os créditos devem beneficiar?
Uma gama ampla de grandes empresas que usam combustíveis em suas atividades operacionais, de transportadoras, e empresas de ônibus ou aviação a varejistas e fabricantes de bebidas, por exemplo.