Valor Econômico
Com a alta das cotações das commodities, que tem feito subir a inflação no mundo, diferentes governos – o do Brasil entre eles – decidiram dar um passo atrás em suas políticas de mistura de biodiesel ao diesel para tentar conter os preços dos combustíveis, que também pode ter efeito sobre os alimentos. Até o momento, as alterações nos mandatos para este ano já implicam em uma diminuição de cerca de 4,5 milhões de toneladas no mercado global de biodiesel, ou 9% da demanda de diesel de biomassa estimados para 2022, de acordo com levantamento feito pela S&P Global Platts Analytics a pedido do Valor.
No Brasil, o governo Bolsonaro interrompeu o programa de aumento progressivo de mistura, que estava em 13%, subiria para 14% a partir de março deste ano e iria a 15% em 2025. Agora, a mistura foi reduzida para 10%, retrocedendo ao nível de 2018. O tema chegou à Justiça nesta semana, mas, se não houver mudanças, 1,9 milhão de toneladas de biodiesel deixarão de ser vendidos no país com a medida, segundo estimativa da consultoria. O cálculo considerou que, a princípio, a mistura seria de 13% em janeiro e fevereiro e de 14% de março em diante.
Outro grande produtor de biodiesel que mudou sua política foi a Indonésia. O governo do país interrompeu seu cronograma de elevação da mistura, que previa aumento para 40% (B40) – o mandato foi mantido em 30% neste ano. Ao não cumprir com o cronograma, os indonésios deixarão de comecializar 1,97 milhão de toneladas, estima a consultoria. Segundo maior produtor de biodiesel do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, o país adiou indefinidamente o B40, que era composto de 30% de biodiesel e 10% de diesel renovável (HVO, na sigla em inglês).
Outro país que também alterou seu mandato foi a Argentina, que, no último mês de agosto, cortou sua mistura 10% para 5%. A decisão deve implicar em uma demanda por biodiesel 430 mil toneladas menor no próximo ano.
A Tailândia, por sua vez, suspendeu temporariamente as vendas de diesel com 20% e 10% de biodiesel, mantendo apenas a mistura de 7%. Com a medida, válida para o intervalo entre dezembro de 2021 e março de 2022, o país pretende conter os preços do renovável. A decisão deve acarretar em uma perda de consumo de 120 mil toneladas de biodiesel no período, estima a Platts.
A consultoria também considerou o caso do Uruguai, que extinguiu seu mandato de mistura, de 5%, estabelecido em uma lei aprovada em 2007. Com isso, perde-se uma demanda de 40 mil toneladas de biodiesel ao ano. Houve casos ainda de países que com políticas para o biodiesel estagnadas, como o Paraguai, cujo mandato de mistura é de 2%.
“A significativa alta dos óleos vegetais, a competição por matéria-prima e o crescimento exponencial do diesel renovável corroboram uma tendência global, em que o biodiesel tradicional deve continuar a perder participação de mercado”, diz Beatriz Pupo, analista sênior de biocombustíveis S&P Global Platts Analytics, que coordenou o levantamento.
Os governos justificaram as medidas afirmando que a alta do biodiesel estava pressionando os preços finais do diesel nas bombas, mas o renovável não foi o principal fator de pressão. Em 2021, os contratos do óleo de soja negociados na bolsa de Chicago para entrega em março subiram 44%, enquanto os do óleo de palma negociados na bolsa da Malásia chegaram a subir 35% até novembro – e após, um refluxo, acabaram acumulando valorização de 20% no ano. O petróleo, porém, subiu ainda mais: o Brent avançou 49% no ano passado.
No Brasil, o biodiesel teve sua parcela de participação na inflação. Em 2021, enquanto o diesel vendido nas bombas (com mistura de 10% na maior parte dos meses) para os motoristas subiu 46% e aumentou sua participação no IPCA a 0,2474 ponto, o preço médio do biodiesel aumentou 36% nos leilões da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
Para Adriano Pires, sócio do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), o biodiesel deve continuar a exercer pressão inflacionária no Brasil ao menos até as eleições. Pires ressalta que o mercado de commodities deve continuar afetado pelos problemas nas cadeias de suprimentos. “Este ano vai ser de inflação, a ser combatida com juro alto, e consequentemente terá preços de energia altos”, disse.
O especialista criticou as mudanças nos cronogramas de mistura de biodiesel, já que isso traz imprevisibilidade aos produtores. “Estão rasgando o contrato que fizeram com o produtor de biodiesel. Começa a se criar insegurança para quem se preparou e investiu”.
No Brasil, os produtores reconhecem o recente impacto inflacionário do biodiesel, mas argumentam que as políticas para o renovável devem levar em conta as externalidades positivas, como a redução das emissões de carbono, geração de empregos no país e impacto na balança comercial com a substituição de importação de diesel. “Não estamos trocando biodiesel por diesel brasileiro [com a decisão de reduzir a mistura]”, lembra Daniel Amaral, economista da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove). Ele nega a tese de concorrência entre energia e alimentos lembrando que o esmagamento de soja, que abastece 75% da oferta brasileira de biodiesel, é matéria-prima para o farelo para ração animal.
Em nota emitida ainda no ano passado, a Confederação Nacional dos Transportes (CNT), que se opõe à retomada do aumento da mistura, argumenta, entre vários fatores, que é incerta a perspectiva de aumento da capacidade instalada da indústria nacional de biodiesel nesta década para garantir oferta ao mercado. Nas estimativas do Plano Decenal de Expansão de Energia 2030, da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), a capacidade instalada deve aumentar de 9,8 bilhões de litros anuais em 2020 para 12,5 bilhões em 2030, atendendo a demanda, mas com menos folga.
Na avaliação de Beatriz Pupo, da S&P Global Platts Analytics, o mercado global de biodiesel também começa a sofrer pressão do emergente diesel renovável, que é feito de óleos vegetais e tem como apelo adicional o fato de ser quimicamente igual ao diesel fóssil, o que elimina críticas de fabricantes de automóveis sobre impactos nos motores. Isso torna o HVO “uma opção muito atrativa no mosaico de soluções para transição energética”, diz.
Segundo a Platts, a participação do HVO na demanda por diesel feito de biomassa (que inclui biodiesel) já ficou em 16% em 2021, e essa fatia deve ir a 30% dentro de quatro anos, o que indica que o biodiesel deve perder participação de mercado para o novo renovável.