Fonte: Valor Online
Ao se confrontar com as agências reguladoras, o presidente Jair Bolsonaro levanta dúvidas sobre o modelo de regulação existente no país, ironicamente também já questionado por governos petistas. Paradoxalmente, o presidente critica uma política que é vista como eficaz pelos liberais que integram sua própria equipe econômica. Bolsonaro afastou o presidente da Agência Nacional de Cinema (Ancine) Christian de Castro no último sábado, cumprindo uma decisão judicial, mas já havia feito ataques à política de audiovisual assim como ameaçou algumas vezes fechar não apenas este órgão como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Em seu discurso, deixa clara a intenção de interferir politicamente nas agências reguladoras. Há três dias, defendeu a indicação de um diretor evangélico para a Ancine, que soubesse recitar de cor versículos bíblicos.
Para Bruno Meyerhof Salama, professor da Universidade da Califórnia (Berkeley, EUA), a antipatia de Bolsonaro pelas agências reguladoras é até certo ponto compreensível e seria preciso reconhecer, de fato, problemas do modelo no Brasil. “Num país como o Brasil não existe estabilidade sem solvência. Não é só uma questão das regras em si. O governo está sempre com o pires na mão, desesperado por recursos. Nenhum país do mundo tem regras estáveis com governo insolvente. Pode ter agências, pode não ter nada, não faz diferença. Quando o governo está quebrado, as regras não funcionam para nada”, afirma o especialista, que já conduziu estudos no Brasil sobre agências reguladoras.
Diretora do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da FGV (FGV-CERI), a professora Joisa Dutra observa que é intrigante ver como os questionamentos feitos por Bolsonaro também ocorreram no primeiro governo do petista Luiz Inácio Lula da Silva. Sem entrar no mérito da retórica do presidente, a professora sustenta que a prática comprova a força do modelo das agências reguladoras, e não seu enfraquecimento: “O Ministério da Economia, por exemplo, tem demonstrado uma compreensão muito clara do papel das agências, assim com o Ministério de Minas e Energia.” As agendas desses ministérios, enfatiza, estão ligadas ao marco regulatório do gás natural e à necessidade de reforma e expansão das obras de saneamento. “Essas duas reformas têm sua implementação calcada em agências reguladoras. Uma coisa é o discurso, outra é a prática”, pontua.
Ex-diretora da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), Joisa Dutra acredita que o modelo das agências reguladoras está consolidado e que as críticas sobre contaminação política e falta de independência decisória refletem dificuldades presentes no próprio Executivo. A sociedade, observa, tem exigido aperfeiçoamento do establishment e do sistema de representação, e a revisão das agências reguladoras é parte disso. “O que importa mesmo é a disposição da Presidência, que é quem indica [os diretores], e do Senado, que é quem sabatina”, diz. Esses dois atores, observa, podem aumentar ou reduzir o custo de indicações políticas e exercer, ou não, seu papel de “check and balance”.
De acordo com Salama, infelizmente há duas discussões sobre agências que caminham em paralelo no Brasil: de um lado, a questão normativa e da eficácia econômica, e, do outro, a pequena política, que envolve as indicações, os vetos, e esquemas ilícitos e de corrupção. Salama diz que já foi grande entusiasta das agências, mas hoje é cético e “está em busca de uma fé”, brinca. Ele lembra que as agências no Brasil foram criadas na década de 1990, no governo Fernando Henrique Cardoso, na esteira das privatizações e com a revisão do papel do Estado: “Na época a coisa foi vendida desse jeito: com as agências, você vai tirar a política da regulação, fazer regulação com técnicos e, portanto, todo esse percurso horroroso de bênçãos políticas, pagamentos escusos, troca de favores e tudo mais vai ser minimizado porque você vai ter um diretor técnico.” Com o PT no poder, passou-se a questionar a eficácia do modelo por uma visão ideológica, diz o professor, de que “as agências seriam capturadas pelo setor privado”: “Isso não é, em si, uma mentira. Há algo de verdadeiro e algo de falso nisso. O que é verdadeiro: as agências foram feitas para serem capturadas pelo setor privado. Tenho absoluta convicção disso.”
Especialista em regulação e direito, a professora Juliana Bonacorsi de Palma, pesquisadora do Grupo de Estudos das Relações entre Estado e Empresa Privada (GRP) da FGV Direito SP, assegura que não existe base empírica para se afirmar que há captura das agências pelo setor privado. Pesquisa conduzida pela FGV sobre agências reguladoras, concluída em 2016, mostrou que apenas 6% dos dirigentes eram provenientes da iniciativa privada: “Há um sistema construído para evitar a captura privada. Pode ocorrer, eventualmente, pontualmente. Mas o sistema se blindou, em tese, para evitar esse tipo de problema.”