Fonte: Automotive Business
Há 15 anos, em 24 de março de 2003, a Volkswagen do Brasil apresentava o carro flex, que pela primeira vez possibilitava o abastecimento com etanol, gasolina ou a mistura dos dois em qualquer proporção. Era um Gol com motor AP 1.6 que produzia 97 cavalos com gasolina e 99 cv com álcool. O lançamento coincidiu com a comemoração dos 50 anos da VW do Brasil, agora com 65.
A soma de todos os automóveis e comerciais leves bicombustíveis nacionais e importados emplacados até os dias atuais já passa de 30,5 milhões. Somente da montadora de origem alemã foram 6,7 milhões de unidades. “O sistema flex se tornou parte integrante da vida dos brasileiros”, afirma o presidente e CEO da VW para a América do Sul e Brasil, Pablo Di Si.
A VW dividiu o mérito daquele Gol com a Magneti Marelli, com a qual desenvolveu o primeiro sistema flexível em combustível.
“O Software Flexfuel Sensor (SFS) é um marco na história automobilística brasileira. É uma tecnologia que se estabeleceu definitivamente e que se adapta a veículos movidos por novas matrizes energéticas, como os híbridos”, recorda o diretor de pesquisa e desenvolvimento da Magneti Marelli, Gino Montanari.
A tecnologia que se tornou comum nos dias atuais representava bem mais que a simples liberdade de escolha na hora de abastecer naquele começo da década passada. O sistema pôs fim à dificuldade enfrentada nos anos 1980 e 1990 pelos consumidores de carros movidos exclusivamente a álcool, como falta do produto nas bombas e grandes variações de preço para cima.
Também em 2003, no mês de outubro, a Volkswagen lançou no Fox o primeiro motor 1.0 flex. Nos anos iniciais o sistema bicombustível enfrentou críticas pelo fato de os motores não alcançarem a mesma eficiência que seus equivalentes movidos exclusivamente a gasolina ou a etanol, mas o aprimoramento tecnológico atenuou o problema.
No ano de lançamento, os modelos flex representaram 3,6% dos automóveis e comerciais leves emplacados no Brasil. Cinco anos depois a participação já passava a 87,2%. Passados dez anos, atingiu 88,5% das vendas totais, praticamente o mesmo nível registrado em 2017 (88,6%). Só não se aproxima mais dos 100% por causa da importância que o diesel tem entre os comerciais leves.
AVANÇOS DO FLEX
Para lançar o primeiro flex de 2003 foi preciso algo mais do que desenvolver um software e sensores capazes de identificar e quantificar a mistura entre álcool e gasolina. Naquele Gol, a Volkswagen eliminou o distribuidor do velho motor AP 1.6, utilizou velas exclusivas, injetores de combustível com maior vazão, novas válvulas e sedes de válvula com material anticorrosivo, entre outras mudanças. O sistema de partida a frio usava o pequeno reservatório ou subtanque de gasolina herdado dos carros a álcool.
Em 2009 a VW lançou o Polo E-Flex, primeiro carro bicombustível sem esse tanquinho. A Bosch forneceu o sistema pioneiro, capaz de aquecer o etanol nos bicos injetores antes da partida. Hoje a Magneti Marelli também fornece a tecnologia. Em 2009 começava também a venda da primeira moto bicombustível, a Titan Mix. Nesses nove anos, Honda e Yamaha juntas venderam mais de 6 milhões de motocicletas bicombustíveis.
Em abril de 2009 a Nissan lançou o Tiida flex, primeiro modelo importado do México a adotar motor bicombustível. Meses depois o Nissan Sentra também passou a vir de lá com a tecnologia. Em 2011 a Kia começava a trazer o Soul flex, primeiro da marca com motor bicombustível.
Hoje o sistema flex está presente até em motores com turbo e injeção direta de carros montados no Brasil, como os Audi A3 Sedan e Q3, BMW Série 3 e X1, Mercedes Classe C e GLA, Volkswagen Up!, Golf e Polo. Nesta semana a Toyota mostrou detalhes do primeiro híbrido flex, que já roda em testes no Brasil (veja aqui).
Também é importante recordar o esforço da Nissan. A partir do uso de etanol a montadora desenvolve o e-Bio Fuel-Cell, veículo movido por Célula de Combustível de Óxido Sólido (SOFC). Ele funciona com energia elétrica gerada a partir do etanol.
Em vez de um sistema de célula de combustível convencional, que converte hidrogênio armazenado sob alta pressão em eletricidade, a tecnologia produz o próprio hidrogênio a partir do etanol. A minivan elétrica NV200 adaptada ao sistema teria autonomia superior a 600 quilômetros com apenas 30 litros de combustível. Segundo a Nissan, estaria disponível a partir de 2020 se houvesse incentivos fiscais.
O futuro da tecnologia flex se apoia no fato de que a cana-de-açúcar utilizada para a produção de etanol captura gás carbônico (CO2) quando cresce, compensando as emissões desse mesmo gás pelos motores em funcionamento.
“O uso intensivo do etanol nos veículos flex evitou a emissão de mais de 450 milhões de toneladas de gás carbônico (CO2), principal causador do aquecimento global e mudanças climáticas”, recorda Alfred Szwarc, consultor de emissões e tecnologia da União Nacional da Cana de Açúcar (Unica). “A emissão evitada é suficiente para neutralizar a emissão anual combinada de CO2 da Argentina, Chile e Colômbia”, ressalta.
Na Conferência do Clima de Paris, a COP 21, o Brasil se comprometeu a reduzir suas emissões de CO2 em 43% até 2030 em relação aos níveis de 2005. Para isso terá de elevar a participação do biocombustível na matriz energética veicular dos atuais 30% para 50%, o que significaria ampliar a produção dos atuais 28 bilhões de litros/ano para 50 bilhões.
SOLUÇÃO MUNDIAL BEM-SUCEDIDA
Automotive Business ouviu também Antonio Megale, presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). Ele acredita que a tecnologia ainda vai conviver ao lado de outras por um bom tempo.
Automotive Business – As indústrias instaladas no Brasil devem canalizar mais esforços em veículos eletrificados nos próximos anos ou ainda vão pesquisar melhorias na tecnologia flex e no rendimento com etanol?
Antonio Megale – Há uma tendência mundial para redução dos gases de efeito estufa e a indústria automobilística está atenta ao tema. Lembramos, contudo, que não há apenas um caminho a ser seguido. Por isso acredito que as várias tecnologias andarão em paralelo por um bom tempo ainda, incluindo o motor a combustão, que tende a ser abastecido com biocombustíveis. Temos no etanol um grande potencial para o Brasil, pois é um combustível que conhecemos e com infraestrutura de abastecimento já instalada, além de ser hoje a solução mundial mais bem-sucedida de propulsão limpa.
AB – Isso deve ocorrer com ou sem o programa Rota 2030?
Megale – A indústria automobilística já investe de forma contínua em engenharia, pesquisa e desenvolvimento tanto no Brasil quanto no mundo todo. O Rota 2030 aumentará a chance de desenvolver ainda mais nossas potencialidades, como o etanol, e de inserir o País como protagonista global na criação de tecnologias. Sem o programa há a possibilidade de deixarmos esse potencial de criação para outros países, com efeitos negativos na atração de investimentos e geração de conhecimento. Certamente não é isso o que queremos.
AB – O senhor acredita que a utilização de motores flex no Brasil vai crescer também entre os veículos importados não só da América Latina, mas também da Europa e Ásia?
Megale – A decisão de trazer veículos da Europa ou Ásia já com motores flex é uma estratégia de cada empresa. Isso já ocorreu no passado e ainda acontece atualmente, pois boa parte dos consumidores brasileiros demanda essa tecnologia. Além disso, o etanol é cada vez mais reconhecido internacionalmente, tanto é que vários países, como China e Estados Unidos, já começam a ampliar sua utilização como forma de diversificar a matriz energética, com potencial efeito na emissão de poluentes.