Folha de S. Paulo
Secretária de Mudança do Clima diz que combustíveis fósseis exigem debate maduro no país e que tempo é maior inimigo do planeta
A secretária de Mudança do Clima do Ministério do Meio Ambiente, Ana Toni, diz que ainda não viu no Brasil nenhuma estratégia clara que direcione recursos do petróleo para o financiamento da transição energética.
“A Noruega faz isso com o fundo soberano deles, mas ali tem uma estratégia específica”, afirma à Folha. “Seria algo a ser debatido. Eu ainda não vi essa proposta aqui no Brasil.”
A secretária de Mudanças do Clima do Ministério do Meio Ambiente, Ana Toni – Pedro Ladeira/Folhapress
As declarações são dadas enquanto o governo mantém a exploração do petróleo nos planos de longo prazo do país mesmo em meio aos constantes alertas ambientais. “O grande problema é que a gente tem um inimigo maior que é o tempo. Tem uma emergência climática acontecendo”, afirma.
No comando da secretaria criada pela ministra Marina Silva (Meio Ambiente) em 2023, Toni está envolvida nas discussões relacionadas ao tema no G20 e na COP30 (Conferência das Partes, encontro da Organização das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas) —ambos no Brasil.
Ela defende mais dinheiro de nações ricas para países em desenvolvimento e diz que o Brasil precisa avançar no debate climático no setor de óleo e gás.
Qual a avaliação sobre o resultado da COP28?
Ela teve um papel muito importante, realmente significativo, no sentido de termos metas setoriais para o setor de energia, que é o que mais polui no mundo. Foi um divisor de águas. E falamos de combustível fóssil, quebramos esse tabu diplomático de não falar sobre o assunto.
Houve coisas importantes, triplicar energia renovável, duplicar eficiência, o “transitioning away”, de transicionar para o fim dos combustíveis fósseis. Agora, como é que isso tudo vai ser implementado? Cadê os planos? Como documento, legal, mas, para medir o sucesso, a efetividade de uma COP, a gente precisa de implementação.
Qual a importância do termo “transitioning away”?
Havia a briga entre “phase out” e “phase down”, e foi interessante que surgiu outro termo. A gente ainda tem que entender o significado desse acordo, como é que se traduz, nas diversas linguagens políticas. Há uma disputa pela interpretação desse novo termo. A gente está interpretando como “ter uma transição para o fim”, como a própria [ministra] Marina [Silva] sempre usa.
E quais as expectativas para a próxima COP?
Para a 29 [que acontece neste ano, no Azerbaijão], o tema é a meta global de recursos dos países desenvolvidos para os países em desenvolvimento. Esse tema está minando a confiança no processo de negociação. Foi acordada [em 2015] a meta de US$ 100 bilhões, o que a gente já sabe que é muito pouco pela emergência climática. Mas, por não haver o cumprimento dessa meta até agora, esse tema está paralisando a possibilidade de outros acordos em outras áreas. É isso que a COP29 tem que entregar: quem vai pagar, quando e como.
Qual a melhor estratégia para financiar a transição energética e o combate às mudanças climáticas?
Um dos grandes problemas, se não o maior, é fazer com que os recursos financeiros, que existem, fluam para países emergentes. É o grande tema que a gente colocou no G20. Há países em desenvolvimento que têm muita ambição climática, diria até muito mais do que alguns dos países desenvolvidos, mas não têm os meios e as finanças para implementar a sua ambição. É o caso brasileiro. O plano de transformação ecológica já mostra essa vontade política brasileira. A gente tem ambição, mas podíamos ir muito além. Como é que a gente faz fluir? O Fundo Clima é isso, é simbólico, ele já existia, e agora a gente conseguiu R$ 10 bilhões para ele.
Mas os fundos dão conta?
Vamos precisar de muitas outras [fontes]. Não é suficiente de jeito nenhum, não tenho dúvida. A reforma tributária é um passo na direção certa ao olhar para as finanças funcionais. O que a gente está subsidiando a mais e a menos. Esse debate está muito vivo aqui no Brasil, e esse processo de rever as políticas tributárias é fundamental. Mas não é um ou outro. Tem que fazer tudo ao mesmo tempo, porque a gente vive uma emergência.
Essa definição sobre a reforma tributária virá na regulamentação, quando entram disputas políticas…
São novos instrumentos econômicos. Precisamos lembrar que a economia hoje reflete a consolidação de um processo histórico, de 300 ou 400 anos. Você não muda do dia para a noite. Na COP, falamos de “transitioning away”, transição para o fim do combustível fóssil, mas essa transição para o fim do poder político do fóssil vai demorar provavelmente mais, porque é uma economia consolidada. Mas ter chegado a esse termo, que parece ingênuo, dá uma direção do que a gente está fazendo: mudar de uma economia que não era por mal, mas era baseada em combustível fóssil, e ir para uma renovável. Era economia linear, e agora estamos falando de economia circular. É um processo.
Não tenho dúvida de que esse esses novos lobbies da energia renovável vão se fortalecer com o tempo. E outros vão diminuir seu poder político. O grande problema é que a gente tem um inimigo maior, que é o tempo. Tem uma emergência climática acontecendo.
E vai dar tempo?
Não temos um problema de direcionamento, ninguém quer colocar em risco a vida humana. O problema é quão rápido essa mudança acontece, como a gente acelera esses processos ao máximo. Sabemos que dinheiro é poder, e temos um hiperparceiro no Ministério da Fazenda. Então, se a gente conseguir fazer com que a economia dê os sinais certos, a gente tem esperança.
O setor de petróleo, inclusive a Petrobras, estima mais 20 ou 40 anos de uso de fósseis. É um tempo possível?
A Agência Internacional de Energia nos deu um outro número, falou em até o fim dessa década. A gente tem que ser guiado pela ciência. Agora [temos que pensar] que áreas dependentes de combustíveis fósseis podem ser redirecionadas mais rapidamente. Alguns produtos já têm substituto —por exemplo, o plástico de uso único— e outros talvez demorem mais porque não têm [substituto]. [Precisamos identificar] que áreas da produção e do consumo podem andar mais rápido.
E a ideia de usar os fósseis para financiar a transição energética?
Essa ideia não surgiu no Brasil, a Noruega faz isso com o fundo soberano deles. Mas ali tem uma estratégia específica. Não estou falando que é certa, mas eles desenharam o fundo para isso. A gente, aqui, não. Se a proposta fosse “vou explorar o nosso petróleo para descarbonizar a economia como um todo, isso vai demorar cinco, dez anos, e, com esse recurso, vou substituir os plásticos primeiro, depois os carros, vou pagar para todo o mundo ter carro elétrico…”, seria algo a ser debatido. Eu ainda não vi essa proposta aqui no Brasil.
Só acho que a gente não está mais nesse momento de achar que pode ter esse luxo [de seguir explorando]. Como falei, o nosso pior inimigo é o tempo. Se explorar, alguém vai usar.
No caso do Brasil, o mais importante para a diminuição da pegada de carbono são o desmatamento e a agricultura, que somam 75% das nossas emissões, e é onde a gente deve centrar. O desmatamento teve queda de 50% [na Amazônia em 2023], estamos fazendo nossa lição de casa.
O agronegócio e os agricultores amadureceram realmente muito, perceberam que são a primeira vítima da mudança do clima. Alguns anos atrás, ninguém poderia sonhar em um presidente falando em desmatamento zero. Era impensável.
Mas o combustível fóssil é 75% da poluição do mundo. É importante que o debate de energia aconteça no Brasil. O debate sobre energia no Brasil ainda não está nessa mesma maturidade. Mas, em outros países, esse debate está acontecendo. A Colômbia chegou a uma saída [que foi cortar os fósseis]. A Noruega, que tem um trabalho muito bom, não decidiu parar, continua explorando petróleo e, para os próximos 30 ou 40 anos, quer continuar. É uma escolha que cada país tem que fazer. A nossa decisão não é de um ministério, é do Conselho Nacional da Política Energética.
Mas o agro ficou fora do mercado regulado de carbono…
É, e agora estão conversando e há possibilidade de repensarem. Está certo que as metodologias de mercado de carbono para a área de agricultura não são tão sofisticadas como na área de energia. E também é certo que, no mercado de carbono internacional, só dois países têm isso [o agro dentro do mercado regulado]. Mas no caso brasileiro é absolutamente fundamental que eles façam parte, desde o começo, dessa construção, mesmo que venham e aderir um pouco mais tarde.
Como serão aplicados os R$ 10 bilhões do Fundo Clima?
O Fundo Clima tem seis áreas contempladas já decididas por um comitê. Mas, mais do que só ter dinheiro —que é fundamental—, quando falo de meios de implementação, é porque temos que ter bons projetos [submetidos ao fundo]. No ano passado, todo recurso do fundo foi desembolsado. 100%. Para muitos projetos de energia renovável, ótimos, maravilhosos, mas a gente quer não financiar só energia. A gente precisa entrar em reflorestamento, bioeconomia, infraestrutura. Temos uma necessidade de pensar em outras áreas. A gente está conversando com o Tesouro, com a Fazenda, e mesmo com o BNDES, para construir um fundo para estruturação de projetos.
E esses R$ 10 bilhões são suficientes?
Precisamos de muito mais. Mas você tem que começar [de algum patamar].
Estamos novamente falando de tempo. A velocidade é satisfatória?
Não acho que, depois do governo que tivemos nos últimos anos, daria para acelerar mais do que a gente está acelerando.
O Novo PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] tem obras de grande impacto ambiental e prevê verba para os fósseis. Não é uma contradição no governo?
Para as obras que seriam mais degradantes, como a BR-319 e a Ferrogrão [que cortam a Amazônia], foram criadas condicionantes de estudo, pesquisa… E o PAC trouxe a perspectiva climática para escolhas de municípios [contemplados], que é absolutamente inédito. É o suficiente? Precisa de mais? Óbvio, mas só de vincular a estudos é um ganho para a área ambiental.
As condicionantes são suficientes para garantir a sustentabilidade?
É suficiente neste momento, faz parte de um processo.
* RAIO-X | ANA TONI, 60
Secretária de Mudança do Clima do Ministério do Meio Ambiente. Graduada em economia pela Universidade de Swansea (País de Gales), mestre pela London School of Economics e doutora pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tem passagens por Fundação Ford, Greenpeace, Transparência Internacional e Instituto Clima e Sociedade.